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Tamiris Gomes e Paulo Talarico

Tragédia da Covid nas periferias acaba com vidas, conexão e acolhimento

1 em cada 8 vítimas brasileiras estão na Grande São Paulo, e periferias são as mais afetadas

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Tamiris Gomes

Jornalista, é editora-assistente da Agência Mural

Paulo Talarico

Jornalista, é editor-chefe de jornalismo da Agência Mural

São Paulo

As periferias são sinônimos de comunidade. Locais onde se pode colocar a cadeira na calçada e papear com quem passe pela rua. A sensação, porém, vem mudando.

Após um ano de luto contínuo, de tempos de confinamento, temos perdido essa conexão e acolhimento. E com pouca expectativa de melhora.

Chegamos (é até difícil de escrever) aos 400 mil mortos registrados por Covid-19 no Brasil. E essa curva da morte desemboca sempre nas periferias.

Dessa triste marca completada nesta quinta-feira (29), uma em cada oito vítimas estava na Grande São Paulo, onde estamos perto dos 50 mil —é um estádio do Corinthians lotado ou mais de 700 ônibus cheios— que simplesmente desapareceram.

Quem vive nas bordas da cidade passou a conviver com o sentimento diário de vulnerabilidade para si mesmo e para as pessoas próximas. É entrar no Facebook, por exemplo, e encontrar ali um repositório de mensagens de luto. Na rolagem pela tela, uma sequência de perfis compartilham as perdas familiares que tiveram, sem contar vizinhos, amigos e conhecidos da igreja do bairro.

A dor coletiva de ver alguém querido morrer se une a desesperança, sem saber se terá trabalho, dinheiro para pagar as contas, o gás ou ter comida na mesa no dia seguinte. Para piorar, nunca houve uma unidade em relação à proteção.

Quando a pandemia começou, falamos como a guerra de discursos sobre o uso de máscaras e o distanciamento social entre governos federal e estadual poderia matar ainda mais nas periferias. Difícil dizer que não foi o que aconteceu ao olhar para os bairros periféricos.

Na capital paulista, os distritos com mais mortes estão nas regiões periféricas da cidade: Sapopemba e Itaquera, na zona leste; Brasilândia, zona norte; e Grajaú, zona sul. Todos eles com mais de 600 óbitos confirmados, somam 2.701 mortes. É mais do que boa parte das capitais do país. Dez subprefeituras que estão nas periferias superaram mil vítimas.

Isso tudo em meio ao dilema de uma população que nunca pode se proteger de verdade, em especial em casas apertadas com famílias numerosas —mas também uma parcela que entende que a pandemia faz parte de um destino cruel para quem a saúde nunca foi um direito.

O costume de ver familiares morrendo precocemente muitas vezes é tido como normal, coisa do destino, infelizmente.

Diferente do dito pelo ministro da Economia, que vê uma longevidade de todos que buscam os serviços de saúde (“todo mundo quer viver 100, 120, 130 anos”), vivemos em regiões onde a idade média ao morrer fica nos 58 anos, como no Jardim Ângela, na zona sul. E mesmo os idosos desses bairros são menos atendidos pela vacinação, a principal esperança de melhora.

É nesse cenário que os moradores das periferias vão às ruas para conseguir um pouco de renda e se veem em situação de exposição. Muitos não têm o home office como opção e tomam ônibus e trens lotados no caminho até o serviço.

Frentistas de postos de gasolina, caixas de supermercado, motoristas de ônibus, vigilantes, por exemplo, não puderam ficar em casa e foram os mais atingidos pelo coronavírus. São trabalhadores que, muitas vezes, não pararam de trabalhar mesmo com suspeitas (afinal, ainda são vítimas de demora para conseguir o resultado do exame).

Ainda há muita gente que questiona se a doença é tudo isso, se agora só “morre de Covid”, mesmo com a partida de pessoas próximas.

A desigualdade, potencializada pela crise sanitária e ineficiência do atual governo em freá-la, também afeta a saúde mental dos moradores. Casos de depressão e ansiedade aumentaram no período de isolamento e grupos que vivem em situação de vulnerabilidade no Brasil precisam de atenção.

Por isso, estão sendo criadas iniciativas como a Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais de Covid-19 no Brasil, apoiada por dezenas de organizações da sociedade civil e movimentos sociais.

O objetivo é gerar uma rede de solidariedade preventiva, reunindo apoio especializado e humano que possa amenizar um pouco o sofrimento.

A rede, entre outras propostas, pretende oferecer orientações emergenciais para sepultamentos e rituais de despedida, além de sugerir canais para garantir o direito à memória, ao luto, ao velório (ainda que virtual).

É um pequeno exemplo de esperança. Não faltaram redes de solidariedade entre moradores das periferias que dão suporte nesse momento, ajudam a conseguir comida para quem viveu e vive sem auxílio. É o apoio para quem não pode velar o corpo do familiar, enterrado meia-noite e meia.

Muito se insiste que dizer os números já não é o suficiente. É preciso refletir que o dono da padaria ali do lado já não está mais entre nós. O líder comunitário que ajudava na cultura da leste também não, assim como o jogador que era craque no time de várzea da zona norte.

Não são apenas números, são infinitas histórias interrompidas. E elas precisam ser lembradas.

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