Descrição de chapéu Coronavírus

Entre o medo do assédio e do contágio: como a pandemia afeta a mobilidade das mulheres nas cidades

Maioria na linha de frente contra a Covid, elas estão mais expostas a problemas estruturais agravados pela crise sanitária

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Marília Moreira
Salvador | AzMina

Aguardar o ônibus se aproximar do ponto para só então sair do hospital. A estratégia, usada para driblar o risco de ser uma mulher sozinha no ponto tarde da noite, ficou mais séria, já que, com menos ônibus circulando na pandemia, o tempo de espera ficou maior.

No rosto, uma máscara PFF2 e, na bolsa, um frasco de álcool em gel, itens fundamentais no deslocamento pela cidade. Uma vez dentro do ônibus, é hora de buscar o lugar menos aglomerado e, de preferência, próximo à janela, longe do vírus e dos assediadores. No metrô, se os vagões estão cheios, a saída é esperar por um novo trem.

Há pouco mais de um ano a psicóloga Vanessa Santos, 29, enfrenta a rotina de encarar o transporte público sendo mulher, com os novos obstáculos trazidos pela pandemia. Moradora no bairro do Vale dos Lagos, em Salvador, ela acorda todos os dias às 5h para bater ponto às 7h no Hospital das Clínicas, no Canela. São 20 km de distância, percorridos com caminhada, metrô e dois ônibus.

Na linha de frente do combate ao coronavírus, Santos é uma das milhares de profissionais de saúde que não puderam cumprir o isolamento. Dados da Organização Mundial da Saúde estimam que as mulheres representam 70% da força de trabalho na área da saúde no mundo, e o Brasil segue o padrão mundial.

Também em Salvador, a nutricionista Juliana Dias, 32, usuária de transporte público, tomou a decisão de só utilizar carro por aplicativo durante a pandemia, para diminuir sua exposição. Desde março de 2020, tem pago mais caro ou aproveitado a carona de amigas para se deslocar de casa para o trabalho.

Passageiros de ônibus no terminal Parque Dom Pedro, em São Paulo - Danilo Verpa - 24.mar/Folhapress

Moradora do Itaigara e funcionária do hospital Aliança, Dias leva menos de 10 minutos para percorrer os 3 km de casa ao trabalho. Para isso, paga cerca de R$ 9 por viagem, aproximadamente o dobro do que pagaria com a tarifa do ônibus em Salvador, que passou a custar R$ 4,40 em março.

A rotina das duas profissionais revela que nem todas as pessoas estão em iguais condições dentro da economia do cuidado e que, quando se fala em políticas de mobilidade urbana, é essencial considerar o fator gênero.

Profissionais de saúde, domésticas, trabalhadoras informais, babás, cuidadoras de idosos e até mesmo as donas de casa estão ainda mais expostas às problemáticas da mobilidade na pandemia.

“De modo geral, as mulheres têm acesso a meios mais precários de transporte. É comum, por exemplo, que quando se tem um carro ou moto na família, esse veículo fique com o homem mais velho do domicílio. Ou seja, as mulheres são maioria no transporte público e na caminhada”, explica Jessica Lima, doutora em engenharia de transportes, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e criadora de conteúdo em @atransportista.

Além do medo do contágio pelo coronavírus em um transporte lotado e mal higienizado, as mulheres passaram a lidar com a redução da oferta de ônibus, ruas vazias e um maior tempo de espera nos pontos, aumentando o medo de assaltos e violência sexual. Ou seja, os fatores de risco comuns às mulheres nos deslocamentos urbanos se amplificaram no período.

Não à toa, o uso dos carros por aplicativo saltou de 54% para 67% entre as passageiras da 99 de fevereiro a outubro do ano passado, segundo dados da empresa. Além disso, 42% das passageiras disseram não ter conseguido cumprir a quarentena, e 18% declararam que não puderam realizar nenhum isolamento.

Apesar de não haver um levantamento sobre o comportamento das usuárias durante a pandemia, a Uber encomendou uma pesquisa junto ao Datafolha em outubro, que revelou que os critérios mais importantes para escolher o meio de transporte na pandemia são grau de aglomeração (29%), a segurança (20%) e, empatados com 14%, a facilidade de acesso e o risco de contaminação.

No caso de Santos, o grau de aglomeração é uma das suas principais preocupações, mas raras foram as vezes em que ela usou transporte por aplicativo no último ano. "Para ser mais exata, foram três vezes nos finais de semana em que passava das 18h, o ponto estava vazio e tive de esperar mais de 30 minutos pelo ônibus”, recorda.

O motivo de recorrer pouco ao aplicativo é o custo das viagens e o impacto disso no rendimento mensal, já que uma viagem no trajeto casa-trabalho lhe custa cerca de R$ 26.

Com as ruas mais vazias e a redução na frota de ônibus, a sensação de insegurança também passou a ser uma constante na rotina da psicóloga. Para ficar menos tempo no ponto sozinha, baixou um aplicativo que estima o horário de chegada do ônibus e começou a combinar de sair do hospital junto com colegas.

“Dá mais segurança sair em grupo, porque meu medo não é só ser assaltada, mas sofrer algum tipo de violência física. Na estação Pituaçu, onde espero o ônibus que me leva direto para a casa, eu chego a ficar 30 minutos absolutamente sozinha à noite, sem nenhum outro passageiro esperando. Então, sempre bate uma insegurança quando eu vejo algum homem se aproximando”, conta.

A insegurança de Vanessa é a mesma das mulheres que, por falta de renda, precisaram abrir mão do transporte público e passaram a se deslocar mais a pé pela cidade.

“A gente tem visto diversas notícias falando sobre famílias que passaram a cozinhar com lenha por conta do preço de botijão e o mesmo acontece com o transporte público. Sem renda, as pessoas acabam necessitando fazer caminhadas mais longas para se deslocar e, se a gente considera as enormes distâncias das cidades, se deslocar e acessar determinados serviços se torna inviável”, compara Lima.

Em 2016, a pesquisadora fez um um estudo com duas comunidades pobres da cidade do Recife e identificou que quase 60% dos entrevistados se deslocavam a pé, mesmo quando esse deslocamento não era restrito ao bairro. Além da questão da renda, pesava a baixa oferta de linhas e a quantidade de veículos nessas regiões.

Ela acredita que isso tenha piorado na pandemia, com o empobrecimento geral da população e o estrangulamento do sistema de transporte. Em muitas cidades, houve redução de linhas e da frequência dos transportes públicos.

Para Haydee Svab, cientista de dados e pesquisadora em mobilidade urbana que atua como consultora de tecnologia d’AzMina, a insegurança que as mulheres sentem no deslocamento a pé se deve ao fato de as cidades serem inóspitas e pouco acolhedoras para elas.

“O modo andar a pé é bom e em si não deveria ser motivo de insegurança, o que faz o andar a pé ser mais inseguro é o nosso ambiente construído, que não gera sensação de segurança, seja através de uma iluminação pública adequada a pedestres, de fachadas ativas (com portas e janelas voltadas para a rua), de atividades de comércio e serviços (uso do solo) que funcionem em diversos horários do dia gerando movimentação”, elenca.

Para ela, compreender a mobilidade urbana é essencial para a construção de uma cidade menos desigual.

“Por que a gente ainda não pensa no transporte como um direito fundamental, tal qual a saúde e educação? Se não há transporte público acessível, outros direitos são barrados, porque a falta de transporte estrangula a possibilidade das pessoas chegarem aos serviços."

Pensar novas formas de conceber o transporte público passa por enfrentar problemas estruturais antigos do setor, que, como este, foram escancarados na pandemia de Covid-19.

Um levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) mostra que o prejuízo já é de quase R$ 12 bilhões. Nos primeiros meses de lockdown, a queda da demanda de passageiros chegou a 80% e, agora, após um ano de restrições, a média nacional está em 40%.

Como consequência, operadoras e concessionárias decidiram suspender atividades ou mesmo encerrar serviços, gerando uma onda de atrasos de pagamentos e desemprego, que culminaram em protestos e movimentos grevistas em todo o país.

Tudo isso se deve não somente à pandemia mas principalmente ao modelo de financiamento e arrecadação, que atualmente se baseia principalmente na cobrança de tarifa por passageiro. Nele, as empresas prestadoras do serviço lucram com o aumento da relação passageiro/veículo. Com menos usuários no sistema, as tarifas tendem a ficar mais caras.

“O transporte lotado não é a raiz do problema, é o sintoma”, alerta Lima, para quem a única solução, neste momento, seria o pagamento da renda básica à população e o lockdown.

Para Svab, falar de lotação dos ônibus exige olhar para a forma como as oportunidades e atividades econômicas são distribuídas na cidade.

“Onde estão as oportunidades de emprego e trabalho nas cidades? É para onde as pessoas vão se deslocar. Todo o mundo para o mesmo lugar, no mesmo horário”, conclui.

A íntegra deste texto foi originalmente publicado pela revista AzMina

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