Descrição de chapéu Coronavírus

Brasil segue política de outros países sobre prescrição de remédios 'off label', mas com menos regras

Retirado, projeto de lei previa criminalizar quem prescrevesse produtos sem evidências científicas

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São Paulo

Presidente da comissão da CPI da Covid, o senador Omar Aziz propôs um projeto de lei que proibiria a prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada, como o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. Após pressão da comunidade médica, no entanto, o texto foi retirado, mantendo o posicionamento do Brasil em relação à prática semelhante ao de países como os Estados Unidos e o Reino Unido.

Assim como médicos brasileiros, americanos e britânicos têm liberdade para prescreverem o que considerarem mais adequado para o paciente, desde que com consentimento. No caso de medicamentos sem comprovação científica, porém, as diretrizes e limites variam.

A proposição foi feita em 25 de maio, quando a secretária da Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como “Capitã Cloroquina”, depôs na CPI. No mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro fez uma postagem em seu perfil no Twitter com uma foto de uma página do projeto, em tom de crítica.

No texto, o senador defendeu que receitar ou aplicar medicamentos sem eficácia comprovada, levaria a pena de seis meses a dois anos, além de multa. Se praticado por profissionais da saúde, a punição seria aumentada em até 50%. Se mantido e aprovado, ministrar um produto terapêutico ou medicinal para um fim que não seja aquele determinado pela vigilância sanitária, como no caso do Kit-Covid, seria considerado crime.

O uso desses e outros medicamentos de forma diferente do determinado pela bula e aprovado pela Anvisa (Agência Brasileira de Vigilância Sanitária), é chamado de “off label”.

Embora o termo não estivesse no projeto de lei, a médica epidemiologista e presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Gulnar Azevedo, acredita que uma lei como essa criminalizaria os médicos e esta não é uma questão judicial.

"Eu acho que isso poderia ser uma regulamentação para a prática médica. Uma regulamentação do CRM [Conselho Regional de Medicina] apoiando não ser indicado. Não adianta judicializar a recomendação, porque estaria interferindo na prática. O ideal seria que a medicina seguisse o que está correto."

Assim como no Brasil, nos EUA a cloroquina e hidroxicloroquina, originalmente indicadas para malária e doenças autoimunes, foram usadas para tratar e prevenir a Covid-19. Em março de 2020, quando começou a corrida por essas substâncias, as prescrições dos medicamentos para uma finalidade diferente da da bula subiu de 1.143 para 75.569, um aumento de 80% em relação ao mês anterior, segundo relatório do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças).

Na época, a FDA (agência reguladora de medicamentos dos EUA) havia emitido uma autorização emergencial para o uso das drogas para tratar pacientes hospitalizados. Mas não foi o que aconteceu: médicos pelo país receitaram para si mesmos, amigos, familiares e pacientes.

Para rastrear a prescrição em massa, de acordo com a AMA (associação médica dos EUA), conselhos de farmácias de ao menos 33 estados emitiram notas e diretrizes sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina e determinaram, por exemplo, a limitação da venda para pacientes com diagnóstico de Covid-19.

Na Califórnia, o conselho médico estadual lembrou os profissionais da saúde que a prescrição inapropriada configura conduta antiética, segundo as leis locais.

Mas, antes mesmo da pandemia de coronavírus, estados americanos já haviam criado bases de dados que documentavam a indicação de medicamentos controlados. As bases são alimentadas por quem os vende e tem como objetivo a promoção de políticas públicas e a redução do abuso de medicamentos.

Assim como no Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro defendeu o uso profilático abertamente, o tratamento fora dos hospitais foi incentivado pelo ex-presidente Donald Trump.

Em setembro, porém, três meses após a FDA emitir um novo comunicado revogando a autorização emergencial do uso de cloroquina e hidroxicloroquina, o CDC afirmou que a venda dos medicamentos estava voltando aos níveis anteriores à pandemia.

Naquela época, já haviam estudos considerados padrão ouro –com placebo, grupo de controle e com voluntários divididos aleatoriamente em grupos– que comprovaram que esses medicamentos não têm eficácia no tratamento de pacientes com Covid-19.

Para Azevedo, o uso contínuo dessas substâncias no Brasil, a despeito das evidências científicas, se dá pela soma da liberdade médica com a influência política do governo federal em parte desta comunidade.

"Infelizmente, colegas esqueceram da ciência e seguiram uma orientação errada, cientificamente e medicamente errada. É o uso off label, mas isso não significa que todo uso off label é ruim", diz.

No Reino Unido, médicos também podem indicar substâncias para fins diferentes daqueles regulamentados pelo governo. Há, porém, uma série de recomendações.

No caso da Covid-19, o profissional deve ter uma justificativa, os benefícios da substância devem ser maiores que o do produto licenciado e deve haver evidências suficientes que comprovem a segurança e eficiência do tratamento.

A cloroquina e a hidroxicloroquina não foram recomendadas para o tratamento da Covid, porém, e a indicação é de que só sejam utilizadas por pacientes diagnosticados com a doença dentro de estudos.

Em junho de 2020, o governo britânico suspendeu o recrutamento de voluntários de todos os estudos envolvendo a hidroxicloroquina. Dias depois, aprovou a adição de participantes à uma pesquisa da Universidade de Oxford, que concluiu que não há evidências que comprovem o uso da substância na prevenção da doença.

No NHS (sistema público de saúde do Reino Unido), o financiamento de qualquer tratamento sem eficácia comprovada não é comum e as diretrizes variam entre os núcleos responsáveis pela administração local. Em um dos casos, o custeio não é autorizado, “independentemente do benefício de saúde ‘potencial’ para indivíduos ou grupos de pacientes”. Em outro, o paciente tem que assinar um documento afirmando estar ciente dos riscos à sua saúde.

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