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'Fiscais de comorbidade' geram constrangimento ao questionar doenças e atrapalham vacinação

Segundo especialistas, é direito do paciente não revelar dados sobre sua saúde

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São Paulo

Foi só publicar em suas redes sociais a foto com o esparadrapo no braço, indicando que havia tomado a tão esperada vacina contra a Covid-19, que a atriz Aline Abovsky, 48, começou a receber mensagens com perguntas como “qual mutreta você fez para poder tomar a vacina”, “onde você conseguiu atestado?”, “mas o que você tem para poder tomar vacina?”.

“De tanto ter que ficar explicando individualmente que sou hipertensa, que isso é uma comorbidade para a Covid e que não tinha conseguido atestado de maneira ilegal, fiz um post desabafando, porque me senti muito mal com toda essa cobrança”, diz.

Assim como Aline, muitos brasileiros que se vacinaram por terem alguma comorbidade –doença que pode levar a um quadro mais grave da Covid, aumentando inclusive a chance de morte–, viraram alvo de questionamentos sobre seu estado de saúde e insinuações de que teriam furado a fila da vacina.

O constrangimento causado pelos “fiscais de comorbidades” pode, à primeira vista, parecer mais uma das tantas discussões que ficam apenas nas redes sociais. Mas a invasão da privacidade do paciente pode ser tão opressora que ultrapassa o mundo virtual, e alguns até relutam em se vacinar, mesmo tendo direito.

Aline Abovsky, 48, foi alvo dos "fiscais de comorbidade" após postar foto comemorando a vacina contra Covid-19 em suas redes sociais. - Eduardo Knapp/Folhapress

É o caso de Marta (nome fictício), 39, que pensou duas vezes antes de ir até o posto de saúde próximo à sua casa para tomar a primeira dose do imunizante. Por ter HIV (vírus causador da Aids), a camareira temia passar por algum constrangimento na triagem.

Ao chegar no local, suas suspeitas foram confirmadas: um problema com a documentação exigida expôs sua condição para as pessoas ao redor e, mesmo com laudo, a aplicação foi negada. “Quando eles [funcionários] nos perguntam, não falam baixinho no nosso ouvido. Tinha muita gente e todo mundo ficou me olhando”, conta.

Saiu do posto decidida a não tomar mais a vacina. Mas a assistente social que acompanha seu caso a convenceu do contrário e, na segunda tentativa, ela conseguiu ser vacinada. O alívio foi tanto que publicou a conquista em suas redes sociais.

Após a publicação da foto, porém, mensagens como “o que você fez para conseguir [se vacinar] se você não tem nem 40 anos?”, começaram a chegar. Para não expor a sua condição, mentiu dizendo que tinha outra comorbidade.

"Se a gente falar que tomou a vacina porque é soropositivo, os amigos da gente e nossa família vão se afastar. Muita gente tem preconceito", disse Marta, que descobriu ter HIV em julho de 2020, enquanto se tratava de um quadro grave de Covid-19.

Para evitar ter de dar satisfações aos fiscais de comorbidades, alguns escondem que se vacinaram. O auxiliar de RH André (nome fictício), 46, por exemplo, nem tirou foto do momento em que recebeu a dose contra a Covid-19, com medo de o registro vazar e ele ter de explicar por qual motivo recebeu o imunizante.

Seus amigos e colegas de trabalho não sabem que ele tem anemia falciforme, mas André imagina que, se vazasse uma foto sua sendo vacinado, as pessoas o questionariam sobre sua saúde.

“Não quero ter que ficar palestrando, explicando que negros têm mais tendência [a ter anemia falciforme]”, diz. “E por causa desse pessoal que fica desconfiando da doença dos outros, eu tive que esconder a coisa mais legal que me aconteceu neste ano.”

O médico Angelo Vattimo, 1º secretário e conselheiro do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), afirma que é direito do paciente não revelar o seu diagnóstico.

Ele explica que no caso do atestado para tomar a vacina contra Covid, é necessário colocar a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), que identifica a condição da pessoa. Mas em um atestado médico para justificar a ausência de um funcionário no trabalho, por exemplo, a CID só é colocada se o paciente consentir.

Vattimo também acredita que houve uma generalização do uso da palavra comorbidade. “Comorbidade não é sinônimo de pessoa debilitada. Não está escrito na testa de ninguém o quão grave pode ser a sua comorbidade. Por isso não é pertinente questionar alguém a respeito de sua doença.”

A ansiedade para se vacinar, relatos de fraudes e até venda de atestados falsos, inflamam ainda mais o debate, de acordo com o médico. “Sei que todo mundo quer comemorar [a vacinação], mas vejo que tem sido difícil escapar desses questionamentos quando a gente torna público, principalmente nas redes sociais.”

Diante da repercussão negativa, a autônoma Ana Machado, 41, diz ter se arrependido de postar em suas redes sociais foto em que comemorava ter tomado a vacina. “Achei que as pessoas ficariam felizes por mim, mas foi um monte de gente perguntando o que eu tinha, se era grave, como eu tinha conseguido atestado. Me senti num tribunal”, conta.

Ana sofre de arritmia e hipertensão, doenças que surgiram, segundo ela, como reflexo emocional do isolamento imposto pela pandemia. Fisioterapeuta de formação, ela não se vacinou quando foi liberada a imunização para os profissionais de saúde, “para não tirar a vez de quem estava na linha de frente”. Mas agora quis exercer seu direito e receber a vacina reservada para quem faz parte do grupo de risco.

“Muita gente duvidou que eu de fato pudesse me vacinar por ter alguma doença. Teve até quem pediu meu laudo médico para falsificar e também tomar vacina.”

Já a vendedora Priscila Cassaro, 44 anos, chegou a ser questionada até por parentes após postar foto comemorando a vacinação. “Não significa que se a pessoa não sabe o que eu tenho, que eu não tenho nada, ou pior, que eu preciso contar o que tenho, me expondo.”

Com Mariana Strassburger, 33, a invasão de privacidade foi de um constrangimento a uma acusação. Após compartilhar em no Instagram que tinha se vacinado por ser hipertensa, foi acusada de ter fraudado o laudo médico.

Uma amiga próxima escreveu em seu perfil no Twitter que pessoas saudáveis estavam comprando atestados falsos. Ao questionar a amiga sobre a publicação, Mariana foi acusada de ser uma delas e ameaçou processá-la. Ainda assim, não foi suficiente para que as insinuações parassem.

Advogados consultados pela Folha explicam que o constrangimento de ser questionado acerca da vacinação nas redes sociais não chega a configurar um crime.

No entanto, caso haja uma acusação ou imputação, a situação pode mudar, como explica Leandro Sarcedo, presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB São Paulo. “Quando alguém afirma publicamente que outra pessoa está usando um atestado falso, isso é calúnia, e cabe, sim, um processo", diz.

“Se a pessoa tem algum prejuízo em razão da repercussão dessas acusações de ter cometido alguma fraude para se vacinar, como a perda de um contrato publicitário ou até do emprego, cabem ações por danos morais e materiais”, afirma Daniel Dourado, médico e advogado sanitarista, e pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.

Embora tenha ficado indignada com a cobrança pública sobre sua comorbidade, a atriz Aline Abovsky afirma entender essa ansiedade ao redor da vacina.

“As pessoas estão vendo que não há vacinas para todos, os insumos para fazer vacinas atrasam toda hora, todos estão com medo, a economia está parada. Tudo isso gera muita revolta, mas não adianta canalizar essa raiva para quem está tomando vacina. Nós não temos culpa dessa situação."

Para a professora de antropologia da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora do Nadir (Núcleo de Antropologia do Direito), Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, viver em um país onde há escassez de vacinas faz com que pessoas se sintam no direito de cobrar e desconfiar de um grupo vulnerável, colocando os outros em posição de maior vulnerabilidade.

“O que seria fundamental são campanhas que conscientizem que reconhecer essas comorbidades coloca quem está em desvantagem em pé de igualdade com os demais. Não se trata de ficar à frente, mas no mesmo patamar. Se fosse corrida e todos saíssem do mesmo ponto, quem tem comorbidade logo estaria em desvantagem.”

Schritzmeyer lembra que algumas doenças podem ser fruto de outras vulnerabilidades socioeconômicas, como a falta de acesso à saúde. A ausência de uma política que privilegiasse este público poderia aprofundar ainda mais as desigualdades no Brasil, afirma a antropóloga.

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