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Parem a matança: regulamentem as drogas

Culpá-las por dependência é como culpar os alimentos pelo vício em comida

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Carl Hart

Professor de Psicologia e Psiquiatria na Universidade de Columbia (Nova York) e autor do livro “Drogas para Adultos” (Zahar, 2021)

As histórias que contamos a nós mesmos sobre as drogas costumam ser muito simples: “as drogas são perigosas, assim como as pessoas que as usam”. Quando eu era um jovem soldado do Exército, eu acreditava que eu estava fazendo o trabalho de Deus ao dizer às pessoas para ficarem longe das drogas. Eu acreditava que a pobreza e a criminalidade que assolavam as comunidades pobres, como aquela de onde vim, eram um resultado direto das drogas.

Essa crença me inspirou a estudar neurociência e dependência química. Passei mais de duas décadas conduzindo pesquisas de laboratório em busca de evidências que comprovassem a narrativa que diz que “drogas são ruins”. Ganhei bolsas multimilionárias do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (NIDA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos para realizar pesquisas, e o que descobri é que a história real sobre as drogas não é tão simples quanto as narrativas populares podem ter levado você a acreditar.

Para começar, uso de drogas não quer dizer vício em drogas. Para atender os critérios da definição de dependência mais comumente aceita –aquela presente no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5.ª edição (DSM-5)–, o uso de drogas precisa causar sofrimento à pessoa. Além disso, esse uso de drogas deve interferir em importantes funções da vida do indivíduo, tais como trabalho, cuidado de crianças e relacionamentos íntimos.

Na realidade, a esmagadora maioria dos usuários de drogas não se torna dependente. É isso mesmo: entre 70% e 90% das pessoas que usam mesmo as drogas mais infames, como crack ou heroína, não são dependentes. Então, se a maioria dos usuários de uma droga específica não se viciam, seria incorreto culpar a droga por causar dependência. Seria como culpar os alimentos pelo vício em comida.

As narrativas preconceituosas da sociedade sobre as drogas inspiraram a chamada “guerra às drogas”. Retóricas insensíveis e políticas e práticas draconianas se tornaram um lugar-comum, levando à desumanização de usuários e vendedores de drogas. Somente no estado do Rio, a polícia mata mais de mil pessoas por ano. As vítimas geralmente são pobres, jovens e negras –e com frequência inocentes. Enquanto isso, os problemas reais enfrentados pelas comunidades tratadas como alvos –por exemplo, pobreza, educação insuficiente, falta de empregos– são ignorados.

O neurocientista Carl Hart, da Universidade Columbia, em Nova York (EUA)
O neurocientista Carl Hart, da Universidade Columbia, em Nova York (EUA) - Acervo pessoal

Então, o que precisa ser feito? Podemos começar reconhecendo que as drogas não são o problema. Houve um tempo em que varríamos os danos causados para debaixo do tapete sob a justificativa de livrar algumas comunidades das drogas. Isso permitiu que leis de combate às drogas racistas e seletivas encontrassem um solo fértil, o que até hoje causa danos incalculáveis e muito sofrimento.

Para acabar com a carnificina, precisamos urgentemente regulamentar a venda e o uso das drogas mais usadas, assim como já fazemos com drogas como álcool e tabaco. Isso geraria inúmeros empregos e permitiria a arrecadação anual de centenas de milhões de reais em impostos. Também seria um enorme avanço no sentido de eliminar os muitos danos causados pelas políticas proibicionistas atuais. Seria o começo de uma reconciliação entre as práticas inglórias do passado e os princípios de direitos humanos que concedem aos adultos o pleno domínio sobre seus próprios corpos. Deveríamos investir nas pessoas, não investigá-las pelas substâncias que elas ingerem.

Reconheço que minha perspectiva pode ser recebida com hostilidade por algumas pessoas. Aqueles que lucram com a guerra às drogas podem tentar manchar minha reputação, dizendo que sou um viciado simplesmente porque já revelei meu histórico de uso de drogas. Isso é uma tática desesperada. Nunca correspondi aos critérios que caracterizam a dependência química –ainda que esse fato seja irrelevante para avaliar a solidez dos argumentos desenvolvidos aqui. Não chamaríamos uma pessoa de alcoólatra apenas porque ela bebe álcool periodicamente. Outros detratores fizeram questionamentos tolos à minha credibilidade sobre a favela. Sueli Carneiro, minha irmã na luta, falou melhor: “entre a direita e a esquerda, sei que continuo preta”.

Continuo comprometido com meu povo e com a ciência. Se as ideias expressas aqui forem aceitas, podemos começar a tratar melhor uns aos outros e viver vidas mais plenas e cheias de significado. Não é isso que todos nós queremos?

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