Médico engana ao dizer que vacinas confudem sistema imunológico e agravam casos de Covid

Profissional americano também distorce informações ao afirmar que máscaras são ineficazes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

São enganosas as alegações do médico norte-americano Dan Stock de que vacinas da Covid-19 confundem o sistema imunológico de pessoas imunizadas e as tornam suscetíveis a quadros mais severos da doença, em comparação com a infecção natural.

Uma postagem, verificada pelo Projeto Comprova, foi compartilhada mais de 10 mil vezes no Twitter. A plataforma adicionou um aviso ao conteúdo para alertar que o material é enganoso.

No vídeo, Stock cita um fenômeno conhecido, em inglês, como ADE (antibody-dependent enhancement) que, segundo ele, agravaria casos da Covid entre vacinados e poderia estar relacionado ao surto recente da doença nos Estados Unidos. O país aplica os imunizantes da Pfizer, Moderna e Janssen. Não há evidências, entretanto, que essa condição esteja associada à doença, tampouco com as vacinas.

O médico ainda tira de contexto um estudo do CDC (Centro de Prevenção e Controle de Doenças Infecciosas) dos Estados Unidos que aponta a incidência de sintomas de covid em pessoas vacinadas em Barnstable, Massachusetts. O próprio estudo afirma que a pesquisa não deve sustentar conclusões sobre a efetividade das vacinas.

Mulher sentada aplica vacina em homem, também sentado. Eles estão no que parece um ginásio de esportes
Vacinação contra a Covid em escola em Elizabeth, cidade de New Jersey, nos Estados Unidos - Bryan Anselm - 1.abr.2021/The New York Times

O vídeo também espalha desinformação ao sugerir que máscaras faciais são ineficazes para coibir a transmissão do novo coronavírus. As melhores evidências científicas indicam que a proteção é essencial para diminuir a exposição à doença. Por fim, Stock faz propaganda de um tratamento sem comprovação científica.

O Comprova considera enganosas as publicações cujos conteúdos confundem ou usam dados imprecisos, como faz Stock ao distorcer informações de estudos para atacar vacinas.

Como verificamos?

Para investigar o conteúdo, o Comprova apurou primeiramente a ocasião em que o discurso do médico foi gravado. A reportagem identificou que as alegações de Dan Stock ocorreram em 6 de agosto de 2021, durante uma audiência na Mount Vernon School Corporation, uma associação escolar que agrega instituições de ensino voltadas a crianças e adolescentes.

O passo seguinte foi investigar quem era o autor do discurso enganoso. O Comprova identificou que Dan Stock é um médico da família que diz praticar “medicina funcional”. Trata-se de um modelo alternativo baseado em uma visão holística dos sistemas biológicos do corpo humano e na individualidade do paciente. Stock é proprietário de uma loja de suplementos.

Ao buscar pelo vídeo e o nome de Dan Stock no Google, a reportagem encontrou uma série de verificações de veículos estrangeiros. Segundo uma checagem do site americano Politifact, o médico indicou por correio de voz que os documentos por ele apresentados aos diretores da associação escolar foram publicados em um blog conservador.

O Comprova analisou os 22 artigos listados no site e identificou estudos retratados por inconsistências técnicas, análises não científicas e até trabalhos que contradizem os próprios apontamentos do médico na audiência. Também consultamos o epidemiologista Julio Ponce, bem como a imunologista da UFCSPA (Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre) Cristina Bonorino para analisar as alegações de Stock na reunião.

A reportagem ainda recorreu a fontes documentais, como um editorial da revista Science que minimiza o risco de ADE em vacinas de covid, orientações do CDC e da OMS (Organização Mundial da Saúde) acerca de vacinas, bem como o painel de evidências de tratamentos para Covid-19 do NIH (Institutos Nacionais de Saúde americanos).

Contatamos o médico Dan Stock por um email disponibilizado em seu perfil no Linkedin, mas não obtivemos resposta até o fechamento desta reportagem.

Verificação

Sem evidências

Ao contrário do que sugere Stock, não há evidências de que vacinas de covid-19 favorecem uma exacerbação da doença mediada por anticorpos. Essa condição, mais conhecida na língua inglesa como Antibody-Dependent Enhancement, descreve um fenômeno em que anticorpos gerados anteriormente por uma infecção natural ou induzidos por vacinas não conseguem neutralizar o vírus em uma nova infecção, e podem facilitar o ataque do patógeno às células do hospedeiro.

Durante seu discurso, o médico sugere que o fenômeno poderia estar associado com aumentos recentes nos números de casos em algumas regiões dos Estados Unidos. Stock cita que foram observados sinais de ADE em estudos com animais durante o desenvolvimento de vacinas contra a Sars, outro coronavírus que foi pivô de uma epidemia em 2003, na China. De fato, a possibilidade de ocorrência dessa condição foi uma preocupação de cientistas no desenvolvimento de vacinas contra a covid, mas nem os estudos pré-clínicos com animais nem ensaios em humanos identificaram evidências do fenômeno, ressalta um editorial da revista Science sobre o assunto, publicado em fevereiro deste ano.

O artigo evidencia ainda que a hipótese levou cientistas a adotarem estratégias para minimizar os riscos de ADE no desenvolvimento das vacinas contra a covid.Também não há evidências de que novas variantes possam desencadear a condição, tampouco o monitoramento de efeitos adversos realizado por agências sanitárias indicou qualquer sinal do problema.

Outra evidência que torna a hipótese improvável é que experimentos com tratamentos baseados em plasma convalescente (com anticorpos contra Covid-19) não provocaram exacerbação da doença em voluntários. Até o momento, as evidências da vacinação no ‘mundo real’ mostram que os imunizantes são eficazes em prevenir formas graves da doença. Cerca de 99% das mortes e hospitalizações por covid-19, nos Estados Unidos, ocorrem em pessoas não imunizadas.

Vale ressaltar que o compilado de evidências citado por Stock não contém nenhum estudo que prove a ocorrência de exacerbação de covid mediada por anticorpos. Uma das pesquisas analisou casos de covid em profissionais de saúde vacinados e apontou que a maioria teve sintomas leves ou quadros assintomáticos.

Aumento de casos

Para atacar a vacinação, o médico cita que em Barnstable, cidade de aproximadamente 44 mil habitantes em Massachusetts, 75% dos novos casos de covid-19 ocorreram em pessoas vacinadas. A informação foi retirada de um estudo do CDC, divulgado no final de julho, que avaliou 469 ocorrências da doença na cidade americana.

Os autores da pesquisa, no entanto, destacam no próprio relatório que o levantamento é insuficiente para fornecer conclusões sobre a eficácia das vacinas de covid, incluindo a variante delta, que atualmente corresponde à cepa predominante no país.

“À medida que a cobertura vacinal a nível populacional aumenta, é esperado que as pessoas vacinadas representem uma proporção maior de casos de covid-19. Em segundo lugar, infecções assintomáticas podem estar subrepresentadas por causa do viés de detecção”, explicam os autores no texto.

Entre as pessoas completamente vacinadas, apenas quatro tiveram que ser hospitalizadas e nenhuma morte foi registrada. O estudo ainda afirma que a “vacinação é a estratégia mais importante para prevenir casos graves e óbitos” e recomenda a expansão de estratégias não farmacológicas, como o uso de máscaras em locais fechados, independentemente do grau de vacinação do indivíduo.

Como já explicou o Comprova, os imunizantes já aprovados por agências de saúde nos Estados Unidos e no Brasil foram desenvolvidos para prevenir casos sintomáticos da doença. Nenhuma vacina elimina totalmente o risco de contrair covid, embora reduzam significativamente as chances do paciente desenvolver formas graves. Segundo o CDC, as vacinas também reduzem o risco de pessoas espalharem o novo coronavírus para outras, mas não excluem completamente essa possibilidade.

O doutor em epidemiologia Julio Ponce lembra que os recentes aumentos de hospitalizações por Covid nos Estados Unidos estão associados a pessoas não vacinadas. “Mesmo que consideremos que alguns vacinados peguem a doença, eles têm um risco diminuído de agravamento. Em Indiana, onde o vídeo foi gravado, 96% dos novos casos são de pessoas que não se vacinaram”, afirma.

Alerta especial

O CDC alerta, entretanto, para casos raros em que vacinados são infectados pela variante delta. Apesar das vacinas serem “altamente eficazes” em evitar o agravamento de infecções desta cepa do novo coronavírus, diferentemente de outras variantes, a delta parece produzir quantidades similares de vírus tanto em pessoas não vacinadas quanto em pessoas totalmente vacinadas.

Por outro lado, a carga viral produzida pelas infecções da variante delta em pessoas totalmente imunizadas diminui mais rapidamente do que as infecções naqueles que não tomaram esquema vacinal completo. “Isto significa que as pessoas totalmente vacinadas [transmitem o vírus] por menos tempo do que as pessoas não vacinadas.”, afirma o CDC.

Melhores evidências

Stock acerta ao afirmar que o novo coronavírus é propagado por meio de pequenas gotículas chamadas aerossóis. Ele desinforma, no entanto, ao sugerir que devido ao tamanho das partículas, o uso de máscaras não seria eficaz para coibir a transmissão da Covid-19. Embora parte dos aerossóis possam escapar das máscaras, o equipamento ainda é essencial para controlar a pandemia.

Segundo o epidemiologista Julio Ponce, trabalhos científicos mostram que o uso da máscara promove uma redução bastante sensível de infectados em contexto de surtos de coronavírus. Ele cita um artigo publicado na conceituada revista de medicina Jama, o qual afirma que antes da pandemia de covid, o uso comunitário de máscaras para reduzir a transmissão de vírus respiratórios era controverso devido a falta de evidências relevantes sobre a prática.

Ao longo da crise sanitária, entretanto, as evidências científicas cresceram. O artigo pontua que em trabalhos recentes, máscaras de pano de várias camadas bloquearam de 50% até 70% das gotículas pequenas exaladas por uma pessoa infectada. O relatório explica que as máscaras ainda servem como uma barreira contra as gotículas maiores.

O compilado de documentos de Stock contra o uso de máscaras reúne desde análises informais de postagens em blogs, estudos retratados por inconsistências técnicas, trabalhos não conclusivos sobre a eficácia da medida, até mesmo pesquisas que, na verdade, sugerem benefícios das máscaras. É o caso, por exemplo, deste artigo que conclui que a análise mostra evidências de que estados americanos com regras para uso da proteção registraram uma maior queda nas taxas de diárias de covid, em comparação a outros que não adotaram a medida.

“O que pode ser colocado em contexto é que há máscaras que protegem mais do que outras. Os estudos que o médico menciona parecem ser aqueles feitos com máscaras cirúrgicas, que são adequadas para limitar a projeção de gotículas e aerossóis de quem as usa, mas não são tão eficazes para proteger de aerossóis possivelmente contaminados no ambiente”, afirma Ponce.

O especialista pontua que, por esse motivo, máscaras PFF2/N95 são mais recomendadas para locais de alta exposição, uma vez que os equipamentos são capazes de filtrar até 95% de partículas pequenas.

Vacinas

Outra informação enganosa do vídeo corresponde à alegação de Stock de que as vacinas de covid não promovem benefícios a quem já se recuperou da doença.

De acordo com o CDC, pesquisadores ainda não estabeleceram por quanto tempo dura a imunidade conferida pela infecção natural ou pelas vacinas. Por outro lado, a agência diz que estudos indicam que os imunizantes podem aprimorar a proteção de pessoas que já se recuperaram da infecção.

Já a OMS afirma que a “maioria das pessoas infectadas com Sars-CoV-2 desenvolvem uma resposta imune nas primeiras semanas, mas ainda estamos aprendendo o quão forte e duradoura é essa resposta imune, e como ela varia entre diferentes pessoas, acrescentando que “mesmo que você tenha tido uma infecção anterior, a vacina age como um reforço que fortalece a resposta imune.”

Em entrevista ao Comprova, a professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre Cristina Bonorino explica que, no caso da infecção natural, o microorganismo evolui para escapar das respostas imunes do hospedeiro, e por isso nem sempre a imunidade deixada após a infecção é eficaz e duradoura.

“As vacinas, por outro lado, focam em estimular mecanismos importantes para controlar a multiplicação do microorganismo no indivíduo, sem a desvantagem do que acontece na infecção natural. Vacinas, portanto, geram respostas mais eficazes que a infecção natural”, comenta a especialista.

A Agência Lupa fez uma verificação de boato semelhante

Tratamento

No vídeo, o médico faz propaganda de substâncias sem benefícios comprovados contra a covid-19 ao citar que tratou 15 pacientes com um protocolo de ivermectina, zinco e vitamina D. O relato de Stock, entretanto, não configura evidência de que o tratamento funcione.

Como já explicou o Comprova em outras verificações, para atestar a eficácia de um medicamento contra a covid, são necessários múltiplos ensaios clínicos randomizados com estrutura adequada e número extenso de participantes. O Painel de Diretrizes de Tratamentos para Covid, do NIH, dos Estados Unidos, afirma que não há dados suficientes para recomendar a favor ou contra o uso da ivermectina para o tratamento da doença.

“São necessários resultados de ensaios clínicos adequadamente desenvolvidos, bem concebidos e bem conduzidos para fornecer orientações mais específicas e baseadas em evidências sobre o papel da ivermectina no tratamento da covid-19”, diz o documento

No compilado de documentos de Stock constam estudos que sugerem potenciais benefícios da vitamina D no tratamento da covid-19. As diretrizes do NIH, entretanto, informam que também faltam mais dados para recomendar contra ou a favor do uso da suplementação da substância como terapia contra o novo coronavírus.

O órgão emitiu a mesma recomendação para o uso do zinco, porém, o painel alerta contra a suplementação acima dos níveis de dieta recomendados, uma vez que o consumo excessivo da substância pode ocasionar deficiência de cobre no sangue e outras doenças.

O autor

Daniel “Dan” Stock se define no Linkedin como um médico de família experiente e com formação em medicina funcional, um ramo alternativo cujos métodos não têm comprovação científica. De acordo com a rede social, ele se formou na Indiana University School of Medicine em 1988.

Segundo o breve perfil de Dan Stock no Top NPI, um site pensado para auxiliar moradores dos Estados Unidos a encontrarem médicos próximos de onde moram, o profissional tem 33 anos de experiência na medicina e é licenciado para exercer a profissão pelo conselho estadual de Indiana.

Após falar ao conselho escolar da Mount Vernon School Corporation, no condado de Hancock, em Indiana, Stock publicou um texto no Linkedin para agradecer o “apoio esmagador de todos”. O teor da mensagem sugere que as medidas adotadas no contexto do enfrentamento à covid-19 são atentatórias às liberdades individuais.

“Por favor, rezem por mim, por nossa própria liberdade que nosso próprio governo federal ameaça, mas como vocês, chamem vocês legisladores estaduais e locais e exijam que eles não sirvam aos especialistas selecionados pelos lobistas federais, mas a você”, ele escreveu.

O Projeto Comprova enviou questionamentos ao profissional no endereço de e-mail disponibilizado por ele no Linkedin, mas não obteve retorno até a publicação desta checagem.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova checa conteúdos suspeitos sobre o governo federal, eleições ou a pandemia que tenham atingido alto grau de viralização. A postagem verificada nesta matéria alcançou mais de 10 mil visualizações no Twitter. Segundo agências de checagem estrangeiras, o mesmo discurso enganoso de Dan Stock atingiu milhões de usuários em outros países.

As alegações do médico são perigosas ao espalhar informações falsas para atacar medidas essenciais para o combate à pandemia, como o uso de máscaras e a vacinação em massa. Essas práticas são recomendadas e defendidas pelas principais agências de saúde no Brasil e no exterior e têm respaldo em evidências científicas relevantes.

O mesmo conteúdo foi verificado por uma série de veículos estrangeiros, incluindo Politifact, Associated Press, Reuters e Verify This. Conteúdos semelhantes já foram desmentidos por veículos brasileiros, como Estadão Verifica, Aos Fatos e Agência Lupa.

O Comprova também já verificou outras afirmações equivocadas sobre a imunização em massa contra a covid. Um boato recente afirmava enganosamente que não há lógica por trás da vacinação para conter a pandemia. Outro conteúdo tirou de contexto uma entrevista de uma autoridade de saúde americana na tentativa de desqualificar a segurança dos imunizantes usados no país. Uma terceira postagem distorcia dados de efeitos adversos da vacina da Pfizer em adolescentes.

Enganoso, para o Comprova, são conteúdos retirados do contexto original e usados em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações disponíveis no dia 19 de agosto de 2021.

A investigação desse conteúdo foi feita por Estadão e O Povo e publicada na quinta-feira (19) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 33 veículos na checagem de conteúdos sobre ​coronavírus, políticas públicas e eleições. Foi verificada por Folha, Correio de Carajás, piauí, Correio Braziliense, GZH e Correio.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.