Hospitais e médicos registram alta de tentativas de suicídio e autolesões em crianças e adolescentes

Estudo da USP mostra que 36% desse público no Brasil apresentaram sintomas de depressão e ansiedade durante a pandemia

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São Paulo

A estudante I., 17, está há um mês e meio em internação domiciliar, após uma série de automutilações. Os ferimentos, escondidos sob as roupas, passaram despercebidos por algum tempo pela família até que o pai os descobriu no início de maio, ao entrar repentinamente no quarto da filha.

“A solidão da quarentena mexeu comigo. Acho que o fato de a gente ficar muito tempo dentro de casa, sem ver as pessoas, os amigos, influenciou bastante. Mas tem muita coisa minha também, como autoestima baixa, aceitação da minha sexualidade”, conta.

A  adolescente I., 17, que se automutilou durante a pandemia e está em internação domiciliar
A adolescente I., 17, que se automutilou durante a pandemia e está em internação domiciliar - Zanone Fraissat/Folhapress

A garota relata que nos meses que antecederam os episódios de automutilação já se sentia deprimida. “Eu queria só ficar deitada o dia inteiro, sem tomar banho, sem vontade para estudar e até para comer. Não via mais sentido em nada.”

Atualmente, I. é acompanhada por um psiquiatra, toma ansiolítico e antidepressivo e faz terapia. “No começo, achava que não adiantava nada, não via mudança nenhuma. Agora já me sinto melhor. Falar sobre isso também me ajuda, percebi que muita gente se importa comigo.”

A economista Renata, 52, mãe de I., conta que quando descobriu as automutilações da filha se sentiu culpada e desesperada com a situação. “Me perguntava: ‘Como não percebi isso antes? Onde é que eu estava?’.”

Até acertar o tratamento psiquiátrico, foram semanas de angústia. “Tive que esconder todos os objetos cortantes, estiletes, compasso, gilete. Chegou um momento em que ela começou a quebrar copos para se cortar. Foi desesperador. Eu não dormia mais. Passava 24 horas de olho nela.”

Casos parecidos aos de I. se tornaram frequentes em hospitais pediátricos e consultórios de psiquiatras infantis. Por trás da maioria dessas histórias, estão sintomas de depressão e ansiedade.

Um estudo da USP, ainda não publicado, que acompanhou por meio de um painel online a rotina de 6.000 crianças e adolescentes brasileiros durante o primeiro ano a pandemia, constatou que 36% deles apresentaram sinais de depressão e ansiedade.

Em outros países, como EUA e Reino Unido, pesquisas que utilizaram metodologia semelhante identificaram, durante a pandemia, uma prevalência de sintomas depressivos de 25% nessa população.

Já dados da literatura científica apontam que cerca de 20% dos jovens apresentam ao menos um episódio depressivo até o final da adolescência.

Segundo o psiquiatra Guilherme Polanczyk, chefe da unidade de internação do serviço de psiquiatria da infância e da adolescência do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas de São Paulo, atualmente há muitas solicitações de todo o país para a internação psiquiátrica nesses grupos etários. O HC tem apenas nove leitos para esse público, que estão sempre ocupados.

“São muitas situações de autolesões e tentativas de suicídio que aparecem no hospital e no consultório. Difícil saber se essas situações não surgiriam independentemente da pandemia. Mas dados dos EUA já mostram que, nesse período, houve aumento relativo na procura de serviços de emergência por essas questões”, explica.

De acordo com Polanczyk, os reflexos da crise sanitária no público infantojuvenil são bem variados. Dependem de vários fatores, como características do indivíduo, situações familiares, condições socioeconômicas e suporte recebido.

“Tivemos crianças que pioraram muito as suas psicopatologias por conta do isolamento. Para muitos, a pandemia também significou a morte do pai, da mãe, ou desemprego deles. Mas para outros também significou retirar o estresse do contato social que muitas crianças e adolescentes sentem.”

O psiquiatra Rodrigo Ramos observa que muitos jovens com episódios recentes de autoagressões ou ideações e tentativas de suicídio já tinham sinais prévios e que agora vieram à tona.

“A pandemia foi uma espécie de lente de aumento. Ela pegou as angústias e as aumentou muito. Há crianças que já sofriam com uma estrutura familiar desorganizada, por bullying, cyberbullying.”

Em uma semana, ele diz ter atendido três casos novos de transtornos psiquiátricos: uma adolescente de 11 anos com anorexia, um garoto de 11 com ideação suicida e uma adolescente de 17 com automutilação. Antes da pandemia, eram três casos novos por mês.

A psicóloga Daniela Prestes atende adolescente internada por autolesão no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR) - Camila Hampf Mendes/Hospital Pequeno Príncipe

No Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba (PR), maior instituição pediátrica que atende o SUS no Brasil, de janeiro a agosto deste ano, foram notificados 21 casos de tentativas de suicídio e de autoagressão entre crianças de adolescentes de 10 a 16 anos.

O número representa um aumento de 75% acima do registrado no mesmo período no ano passado, quando foram 12. A maior parte dos casos deste ano (18 deles) se refere às meninas.

A situação levou a uma revisão dos protocolos e a mudanças nos quartos de internação, como a retirada de objetos cortantes (garfos, facas e copos de vidros) do alcance desses jovens. Até o chuveirinho do banheiro foi removido depois que um adolescente, que se recuperava de uma tentativa de suicídio, tentou novamente usando esse apetrecho.

Segundo Rosane Moura Brasil, coordenadora do serviço social do Pequeno Príncipe, em comum a maioria desses jovens tem um histórico de depressão e de sentimento de abandono pelos pais.

“Quando acontece [a tentativa de suicídio], os pais dizem: ‘Não entendo por que fez uma coisa dessas. Ele(a) tem tudo’. Tem tudo de material, mas não tem o que o sustente emocionalmente. Noventa por cento deles não querem acabar com a própria vida, querem acabar com a sua dor”, diz.

Nem sempre esses casos de ideações e tentativas de suicídios e autolesões estão ligados a transtornos psiquiátricos, como a depressão, na opinião da psicóloga Daniela Carla Prestes, também do Pequeno Príncipe. “Mas sempre há uma situação de sofrimento intenso, que não é legitimada porque o senso comum ainda é o de que criança não sofre.”

Para ela, há muito isolamento dentro das famílias e pouca comunicação, o que faz com que muitas dessas crianças e adolescentes não consigam simbolizar com palavras o que estão sentindo. O caminho, para alguns, acaba sendo expressar esse sofrimento no corpo, por meio das automutilações.

“Observamos muitos adolescentes entristecidos, ensimesmados, com sentimentos de impotência, de inutilidade, com autoestima baixa, dúvidas e conflitos sobre a sexualidade. Neste momento, em que o isolamento social foi requerido, esses sentimentos acabaram potencializados”, diz a psicóloga.

O Pequeno Príncipe dispõe de atendimento psicológico ambulatorial após a alta hospitalar. “Muitas vezes não é só paciente. A situação envolve a família inteira, o pai, a mãe, o irmão.”

Conflitos familiares também acabaram sendo exacerbados com o home office dos pais, segundo o psiquiatra Rodrigo Ramos. “Se antes havia uma omissão, agora multiplicou por dois. Os pais estão ali do lado, mas estão tão assoberbados com o trabalho que não dão nenhuma atenção a essa criança ou adolescente.”

No SUS, foram notificados 28.542 casos de lesões autoprovocadas envolvendo crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos até setembro do ano passado. Ainda que parciais, os dados indicam uma queda em relação a 2019 (41.373)

Mas, segundo a médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies, isso não significa necessariamente uma redução da incidência dessas violências, mas, sim, uma queda na procura de serviços de saúde durante a pandemia. Também há problemas relacionados à notificação desses casos.

Por exemplo, as atuais fichas de notificação não permitem distinguir as tentativas de suicídio de outras lesões autoprovocadas. Há um campo específico em que deve ser especificada a natureza dessa automutilação, mas em um terço dos casos esse campo aparece em branco.

“Ao todo, metade dos registros de lesão autoprovocada não contém uma descrição que permita discernir a intencionalidade da autoagressão”, diz ela.

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