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Lei Antimanicomial completa 20 anos em meio a retrocessos

Relatório indica que saúde mental hoje sofre com apagão de dados, suspensão da avaliação de hospitais psiquiátricos e desfinanciamento

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São Paulo

“Ninguém gosta de estar num manicômio porque, lá, louco não tem voz. Decidem tudo por ti. Te dopam. Te ofendem. Às vezes, te amarram. A comida é precária. Não te tratam com dignidade.”

O relato simples e direto de Sandra Mara, 46, é amparado em ampla experiência. Desde os 18 anos, ela foi internada 91 vezes em hospitais psiquiátricos de Porto Alegre (RS), na grande maioria dos casos, contra a sua vontade. Numa dessas internações, ficou no hospício por dez anos. “As pessoas não me davam ouvidos. Era considerada mais uma louca. Ninguém nunca me levava a sério”, lembra.

Há 11 anos fora de hospitais psiquiátricos, Mara ganhou uma nova vida a partir das mudanças na política nacional de saúde mental inauguradas pela lei 10.216 de 2001, que reorientou o modelo de assistência a pessoas com transtornos psiquiátricos e reiterou que elas têm direitos.

Sandra Mara, 46, foi internada mais de 90 vezes em hospitais psiquiátricos ao longo de sua vida. Em uma dessas internações, passou 10 anos privada de liberdade em um manicômio de Porto Alegre, onde era amarrada, ficava em isolamento e sofria humilhações constantes
Sandra Mara, 46, foi internada mais de 90 vezes em hospitais psiquiátricos ao longo de sua vida. Em uma dessas internações, passou 10 anos privada de liberdade em um manicômio de Porto Alegre, onde era amarrada, ficava em isolamento e sofria humilhações constantes - Marcos Nagelstein

Se antes o cuidado era centrado no isolamento de pessoas em grandes hospitais, onde denúncias de maus-tratos eram recorrentes, o novo modelo previu o tratamento em liberdade por meio de equipamentos comunitários, nos territórios, priorizando a autonomia e a cidadania dos pacientes.

Mara entrou no programa De Volta para Casa, criado em 2003 para desinstitucionalizar pessoas que estavam há muito tempo em hospitais psiquiátricos, foi transferida para um Serviço Residencial Terapêutico (SRT) e passou a ser tratada em uma unidade do Caps (Centro de Atenção Psicossocial). “Mudou o modo como me tratavam. E eu descobri que tinha direitos”, conta ela, que hoje vive de maneira independente, dedicando-se aos cuidados com o filho autista.

Conhecida como Lei Antimanicomial e responsável pela implementação em nível federal da chamada reforma psiquiátrica, a lei completa agora 20 anos em meio a uma série de retrocessos apontados por um estudo divulgado agora pelo Desinstitute, uma organização não governamental ligada ao campo da saúde mental.

O documento, intitulado Painel Saúde Mental: 20 anos da Lei 10.216, denuncia um apagão de dados vivido pelo setor desde 2016, ano em que deixou de ser publicado pelo Ministério da Saúde o boletim eletrônico “Saúde Mental em Dados”. Disponibilizado de 2006 até 2015, o boletim reunia informações fundamentais para o desenvolvimento de políticas públicas e para o controle social do setor.

Procurado, o Ministério da Saúde não informou por que esses dados deixaram de ser públicos.

Esse apagão de dados indica um descaso com o monitoramento da qualidade do serviço de cuidado ofertado para as pessoas em sofrimento psíquico”, avalia a psiquiatra Nicola Worcman, coordenadora do Painel e diretora de assuntos científicos do Desinstitute.

“Com isso, as políticas públicas da área de saúde mental vêm sendo feitas às cegas no Brasil num momento em que nunca se falou tanto em saúde mental, seja no sentido do cuidado preventivo, seja por conta do lastro de sofrimento psíquico que a pandemia vai deixar tanto no nível individual como no da saúde coletiva.”

Nesse contexto, chama a atenção o dado apresentado no relatório que aponta para o desfinanciamento da saúde mental, seja em proporção dos gastos da pasta da saúde, seja nos gastos federais per capita com a Política de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Em 2012, ele era de R$ 16,90 por pessoa e, em 2019, já havia caído para R$ 12,40, sempre em valores atualizados.

O painel traz a série histórica de gastos federais em saúde mental, divididos entre hospitalares e extra-hospitalares, indicando a inversão nas prioridades promovida pela Lei Antimanicomial. Ao mesmo tempo, indica que essa evolução se estagnou também a partir de 2016, quando desacelera tanto a redução de leitos em hospitais psiquiátricos quanto a ampliação dos equipamentos nos territórios, como os Caps, que precisam ser cadastrados pelo Ministério da Saúde para terem acesso às verbas federais.

“O ritmo de cadastramento anual dos Caps caiu muito nos últimos anos. E o relatório perguntou às secretarias estaduais e municipais de Saúde sobre equipamentos que aguardavam cadastramento. Identificamos pelo menos 95 Caps na fila, o que aponta para uma mudança de objetivos do ministério e um menor interesse nesse cadastro”, avalia Renata Weber, pesquisadora do painel e do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

“Está em marcha um projeto de desmantelamento da reforma”, afirmou o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, professor da UFRJ e ex-coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, durante a live de lançamento do Painel.

Para o psiquiatra Gilberto Alves, professor colaborador em saúde mental da UFRJ e coordenador da residência de um hospital psiquiátrico em São Luís (MA), "é razoável que os hospitais progressivamente diminuam o número de leitos, que deveriam migrar para hospitais gerais, onde alguém com múltiplas comorbidades pode ser tratado".

Ele avalia que existam concepções muito distintas do que deve ser um hospital psiquiátrico. "Seria importante expandir esse conceito para o de um centro de referência mais complexo e bem aparelhado", diz ela, para quem o hospital é um equipamento importante para casos específicos e graves.

“Esse tema é delicado porque envolve direitos humanos, o que ficou evidente durante o ‘Revogaço’, a tentativa de revogar diversas portarias de saúde mental para propor sabe-se lá o quê, sem nenhuma discussão”, aponta o psiquiatra Luis Fernando Tófoli, professor da Unicamp.

Entre as medidas que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) pretendia com o revogaço estavam o fim do programa De Volta para Casa, a redução das atribuições dos Caps, o afrouxamento de controles da internação involuntária e o fim dos mecanismos de fiscalização e de estímulo à redução do tamanho dos hospitais psiquiátricos.

O painel diz que essas intenções do governo federal já estão presentes na realidade da política de saúde mental em execução hoje no país. E uma de suas facetas mais graves está no fato de o Programa Nacional de Avaliação Hospitalar em Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria) não ocorrer desde 2014, quando foi feita a última rodada de avaliações dos manicômios do país.

“Trata-se de um dos mecanismos que avaliam como está a qualidade dos hospitais, sua estrutura física e adequação às normas do SUS, criando indicadores de qualidade”, explica Weber.

Desde 2002, 48 hospitais foram fechados ou tiveram seus leitos SUS descredenciados, com base nos resultados do PNASH/Psiquiatria, cuja última versão, realizada de 2012 a 2014, indicou o descredenciamento de nove hospitais psiquiátricos que seguem abertos e recebendo verbas federais por leitos SUS.

Em nota, o Ministério da Saúde afirma que “os hospitais psiquiátricos estão sob gestão contratual ou administração direta estadual ou municipal” e que cabe a elas, “a responsabilidade da gestão e monitoramento de contratos, bem como as inspeções regulares”.

A pasta informa ainda que identificou falhas metodológicas no PNASH e que algumas das instituições citadas como indicadas para descredenciamento “tiveram suas avaliações revistas e corrigidas, enquanto outras estão em processo de retificação da avaliação”.

A falta de transparência, no entanto, descredibiliza esse processo, sugerindo maior vulnerabilidade das pessoas com transtornos psiquiátricos que ocupam os 13.929 leitos SUS em hospitais psiquiátricos do país, computados pelo painel, que lembra do reajuste no valor pago em diárias de internação após mudanças na política de saúde mental ocorridas no fim de 2017.

O relatório da Inspeção Nacional realizada em hospitais psiquiátricos pelo Conselho Federal de Psicologia, Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério Público do Trabalho e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura em 2018, indica que há motivos de preocupação, num país com histórico de violações nessas instituições, também usadas para segregar ex-escravos, imigrantes, homossexuais e até presos políticos.

Dois casos marcantes são o do Complexo Hospitalar do Juquery, em São Paulo, e do Hospital Colônia de Barbacena (MG), onde se estima que tenham morrido 60 mil pessoas. A história do hospício paulista é contada no livro "Cinzas do Juquery", escrito pelo jornalista Daniel Navarro Sonim e pelo ex-enfermeiro do hospital José da Conceição. O caso de Barbacena ficou mais conhecido em 2013, com o lançamento do livro "Holocausto Brasileiro", da jornalista Daniela Arbex. Em 2021, a tragédia inspirou a série de ficção "Colônia", do cineasta André Ristum.

"Hospital psiquiátrico tende a derivar para um serviço com muito pouco cuidado com direitos humanos. Relatos sistemáticos de abuso são infelizmente comuns. No entanto, em hospitais gerais e em Caps, embora a qualidade dos serviços possa variar, não há relato de abusos", aponta Tófoli.

A inspeção mais recente de hospitais psiquiátricos do país indica que os horrores de outros tempos podem não ser exatamente coisa do passado. “Inspecionamos 40 hospitais psiquiátricos em 17 estados das 5 regiões do país e foi levantado um cenário, para ser generoso, muito preocupante”, afirma o psicólogo Lúcio Costa, perito do mecanismo. “Foram inúmeras as violações de direitos humanos constatadas nessas instituições, com indícios da prática de tortura e de tratamento cruel e degradante.”

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