Descrição de chapéu Coronavírus Prevent Senior

Mortes por causas mal definidas saltam 30% na pandemia de Covid

Para especialistas, dados do próprio Ministério da Saúde indicam subnotificação de óbitos da doença; pasta não comenta

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Brasília

Mortes em decorrência das chamadas causas mal definidas cresceram 30% no Brasil no primeiro ano da pandemia. Para especialistas, esses dados indicam uma subnotificação de óbitos da Covid-19.

Estão entre os casos mal definidos, por exemplo, aqueles registrados em casa ou em hospital, sem assistência ou com causa desconhecida. No total, foram 97.436 óbitos desse tipo no país em 2020, contra 74.972 em 2019 —um aumento, portanto, de 22.464 casos em um ano. Isso representaria 11,5% dos 194.976 mortos brasileiros por Covid no ano passado, de acordo com o consórcio de veículos de imprensa.

Os dados do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade) do Ministério da Saúde foram compilados por Fatima Marinho, médica epidemiologista e especialista sênior da Vital Strategies, organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a governos.

Equipe faz sepultamento no cemitério de Vila Formosa, na zona leste de São Paulo - Rivaldo Gomes - 20.ago.2021/Folhapress

De janeiro a maio de 2021 foram 37.824 mortes com essa classificação, mas os dados são preliminares. O número é próximo ao que foi registrado no mesmo período de 2020, em dados mais consolidados: 37.981.

"Geralmente as mortes no domicílio, quando são mal definidas, ocorrem na população mais pobre, que não teve acesso a médico ou estava sem assistência médica nos dias que antecederam o falecimento, não tendo sido possível conhecer a causa da morte sem outras investigações", afirma Marinho.

Das 318.172 pessoas que morreram em domicílio em 2020, 57.160 tiveram a classificação de causa mal definida. Isso corresponde a um crescimento de 45% em relação a 2019.

As mortes em hospitais nessa classificação também cresceram. A alta foi de 19%, passando de 22.146 casos, em 2019, para 26.308, no ano passado.

Além da falta de assistência médica, entram nesse grupo mortes em casa ou em equipamento de saúde decorrentes de sintomas desconhecidos e também por parada cardiorrespiratória, insuficiência respiratória aguda e SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) sem uma causa específica.

"Só existe uma causa de morte. Eventos como parada cardiorrespiratória, SRAG, insuficiência respiratória são modos de morrer e mecanismos de morte, são consequências da verdadeira causa que levou à morte", diz Marinho.

Para ela, em muitos casos a verdadeira causa da morte foi Covid, mas ela acabou não sendo identificada.

Só 5.709 óbitos, por exemplo, foram classificados como resultantes da Covid em domicílios em 2020. Entre as razões que dificultaram a classificação estão falta de médicos, testes e vagas em hospitais.

Marinho explica ainda que, com o pico da pandemia, a orientação das secretarias de saúde foi dar uma declaração de óbito sem uma causa específica, nos casos sem qualquer informação clínica e história da doença, para poder liberar o corpo e fazer o enterro. Em paralelo, realizar exame RT-PCR para posteriormente reconstruir o atestado de óbito.

Segundo ela, esse procedimento reforça a tese de subnotificação da Covid-19. Em estudo recente, com dados de Belo Horizonte, Salvador e Natal, a Vital Strategies apontou que 94% dos óbitos sob suspeita do novo coronavírus estavam realmente ligados à doença.

A Vital Strategies também já mostrou que muitos casos de SRAG por causa não especifica tinham ao menos três ou mais sintomas da Covid e deveriam ser investigados.

Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu até a publicação deste texto.

Epidemiologista e professora da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), Ethel Maciel afirma que a subnotificação é comum nas crises sanitárias.

"É um problema de qualidade da assistência, do acesso ao serviço de saúde, e também da informação", diz a pesquisadora.

Estudo publicado no The Lancet em 2012 apontou que mais de 200 mil mortes registradas entre 2009 e 2011 tiveram relação com a pandemia de H1N1, enquanto apenas 18,5 mil óbitos tiveram confirmação laboratorial da ligação com esta gripe no período.

Diego Xavier, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz, diz que a classificação da morte como causa mal definida coincide com os picos da pandemia no Brasil. "O pico aconteceu em maio [de 2020], quando houve 10.754 mortes com essa classificação", afirma Xavier.

O pesquisador explica que, com a pandemia, o atendimento de saúde ficou estrangulado e até grupos que trabalham na verificação e no preenchimento de óbitos ficaram prejudicados.

"Mesmo nas mortes dentro de casa, durante a pandemia, as equipes que poderiam atestar os óbitos estavam com alta demanda no cuidado de pacientes. Com isso, aumentou o volume de óbitos reportados pelo responsável da pessoa que faleceu. Como consequência, houve queda na qualidade da informação e subnotificação", diz.

Marinho, da Vital Strategies, afirma ser importante diagnosticar corretamente a causa da morte porque a pandemia vai durar alguns anos. A Covid, de acordo com ela, irá se tornar uma doença endêmica e haverá surtos.

"Conhecer e ter bons dados é fundamental para saber lidar com o futuro próximo e não ser controlado pelo vírus, mas antecipar o risco e prevenir mortes e casos graves, proteger a população", diz a médica.

Apesar dos dados indicarem que existe uma subnotificação de mortes provocadas por Covid no país, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) insiste em afirmar exatamente o contrário —que os números da pandemia foram inflados, mesmo sem apresentar qualquer indício de que isso tenha acontecido.

Em entrevista no começo deste mês, ele disse que o número de mortes foi "superdimensionado. "O próprio povo diz: o pai, mãe, não morreu de Covid, foi outro problema. Botaram Covid. Muitas vezes para liberar com mais facilidade o corpo."

Mas as apurações da CPI da Covid indicam na verdade movimentos para esconder os números da pandemia.

Dossiê assinado por 15 médicos entregue aos senadores acusa a operadora Prevent Senior de alterar prontuários de pacientes para ocultar eventuais problemas com o uso de medicamentos sem eficácia para Covid no chamado tratamento precoce.

Em particular, o documento menciona os casos do médico Anthony Wong e de Regina Hang, mãe do empresário bolsonarista Luciano Hang —ambos morreram de Covid-19.

A operadora nega irregularidades. Em depoimento à CPI, o diretor-executivo da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Júnior, reconheceu que alguns códigos de diagnóstico de pessoas com Covid-19 foram modificados, para a doença deixar de ser mencionada nos dados de internação. Após a declaração irritar senadores, o diretor recuou e disse que os atestados de óbito ainda mencionavam a Covid.

De acordo com Marinho, um dos hospitais da Prevent Senior, no qual ela se debruçou sobre os dados, apresenta alta considerável de mortes por causas mal definidas.

Os números do SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade) apontam que foram registrados 64 óbitos por transtornos respiratórios não especificados em 2020 na unidade, contra 32 de 2017 a 2019.

"Transtorno respiratório não especificado não é causa de morte. Em uma pandemia de Covid esses transtornos têm grande chance de ser Covid, como já foi demonstrado no estudo das três capitais brasileiras", diz a epidemiologista.

"Esses casos merecem uma investigação para que as famílias saibam qual foi a verdadeira causa da morte", afirma. Procurada para comentar, a Prevent Senior não havia respondido até a publicação deste texto.

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