Post engana ao insinuar que STF não quis agir contra Doria sobre doses interditadas de Coronavac

Judiciário nem chegou a ser acionado para intervir na questão

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São Paulo

É enganoso um tuíte que associa a interdição de um lote de vacinas Coronavac aplicadas em São Paulo e a atuação do STF (Supremo Tribunal Federal). O órgão não abriu qualquer procedimento relacionado à interdição, decidida de forma cautelar pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), porque não foi provocado para tal. Não há processo judicial movido neste sentido por qualquer órgão ou por cidadão.

Como verificado pelo Projeto Comprova, a postagem verificada afirma ser “muito interessante” que o STF nada tenha feito contra o governador do estado, João Doria (PSDB), em razão da aplicação de 4 milhões de doses “feitas por um laboratório desconhecido, que a Anvisa já havia proibido o uso”. Dessa forma, insinua que o STF não quis agir contra o gestor.

Ocorre que o STF sequer foi acionado para interferir nesta questão. O órgão informou à reportagem não ter localizado qualquer processo envolvendo o nome de Doria. Em geral, o principal papel do tribunal é atuar quando provocado, por exemplo, pelo Ministério Público.

Mão esquerda segura frasco de vacina; no frasco está sendo inserida a agulha de uma injeção
Agente manipula dose de Coronavac - Carl de Souza - 6.fev.2021/AFP

O autor do tuíte também engana ao não informar que as vacinas em questão foram aplicadas antes da interdição cautelar de doses que foram envasadas, e não fabricadas, como sustenta a postagem, em uma unidade não inspecionada e não aprovada pela Anvisa.

A reportagem procurou o autor do tuíte via mensagem direta na rede social, mas não recebeu retorno até o fechamento deste material.

Para o Comprova, é enganoso o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Como verificamos?

Inicialmente, a reportagem buscou informações sobre a interdição dos lotes de Coronavac na imprensa e nos sites do Butantan, responsável pela distribuição no Brasil, e da Anvisa, que regula os imunizantes.

As duas entidades também foram procuradas por email, assim como o STF, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, e a biofarmacêutica chinesa Sinovac, parceira do Butantan no desenvolvimento da vacina. As duas últimas não responderam.

Por fim, entramos em contato com o autor do tuíte, que não deu retorno até esta publicação.

Verificação

Interdição

No dia 4 de setembro, a Anvisa divulgou ter interditado, de maneira cautelar, 25 lotes da Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com a biofarmacêutica chinesa Sinovac. Foram proibidos a distribuição e o uso de 12.113.934 doses envasadas em uma planta não aprovada na AUE (Autorização de Uso Emergencial) do imunizante. Em nenhum momento a agência informou que a fabricação do insumo é irregular.

A interdição ocorreu após reunião entre a Anvisa e o Butantan, no dia 3. O instituto paulista encaminhou à agência reguladora um ofício informando que lotes enviados para o Brasil na apresentação frasco-ampola (monodose e duas doses) foram envasados em uma unidade chinesa não inspecionada e não aprovada pela Anvisa.

Além dos lotes que já haviam desembarcado no Brasil, há mais 17 —totalizando 9 milhões de doses— envasados no mesmo local e que estão em tramitação de envio e liberação ao país. Conforme a Anvisa, a vacina envasada em local não aprovado na AUE é configurada como produto não regularizado.

O órgão federal declarou ter avaliado toda a documentação apresentada pelo Instituto Butantan e consultado as bases de dados internacionais em busca de informações acerca das condições de BPF (Boas Práticas de Fabricação) da empresa responsável pelo envase dos lotes, mas não localizou relatório de inspeção emitido por outras autoridades de referência, como o PIC/S (Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme - Esquema de Cooperação em Inspeção Farmacêutica) e a OMS (Organização Mundial da Saúde).

Em nota à imprensa, a agência afirmou que “considerando a irregularidade apontada, somada às características do produto e à complexidade do processo fabril, já que vacinas são produtos estéreis (injetáveis), devendo ser fabricadas em rigorosas condições assépticas, bem como o desconhecimento pela Anvisa sobre o cumprimento das BPF por parte da empresa, torna-se necessária a adoção de medida cautelar para evitar a exposição da população a possível risco iminente.”

A Anvisa explica que na autorização de uso emergencial da Coronavac consta que as vacinas devem ser importadas prontas da Sinovac ou o granel da vacina formulada e estéril ser importado da farmacêutica para envase e acondicionamento no Instituto Butantan. Qualquer alteração nestas configurações deve passar por nova análise das áreas técnicas da Anvisa.

Ainda no dia 4 foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União a resolução nº 3.425, contendo os lotes que estão sob interdição cautelar e proibidos para distribuição e uso.

O Comprova procurou a Anvisa questionando, entre outras coisas, quem é o responsável pelo controle de lotes que entram e são distribuídos no país, quando e em que circunstâncias ocorreu a distribuição dessas doses, de quem é a responsabilidade pela distribuição em desacordo com a aprovação para uso emergencial, e se as doses podem vir a ser liberadas.

Em nota, o órgão informou que, durante a vigência da interdição, trabalhará na avaliação das condições de BPF da planta fabril não aprovada e no potencial impacto dessa alteração de local nos requisitos de qualidade, segurança e eficácia das vacinas.

Além disso, diz que serão feitas tratativas junto ao Butantan para a regularização desse novo local na cadeia fabril da vacina. Sobre as demais questões, declarou que o caso ainda está em andamento e não é possível antecipar outras informações.

A reportagem também procurou a Sinovac, pedindo nome, endereço e mais informações sobre a fábrica que envasou as doses. Além disso, questionou o motivo de eles não terem informado o Brasil sobre a mudança de local. No entanto, não obtivemos uma resposta até a publicação.

São Paulo e outros estados

Ainda no dia 4, o G1 informou que o estado de São Paulo havia aplicado 4 milhões das doses interditadas pela Anvisa. A imunização, contudo, foi realizada antes da decisão da agência reguladora, a partir do comunicado do Instituto Butantan.

A reportagem publicada apresenta posicionamento do governo de São Paulo afirmando que monitora as reações em pessoas vacinadas com essas doses e que não foram observadas “intercorrências em termos gerais” naqueles que receberam imunizantes dos lotes em questão.

A Secretaria Estadual de Saúde afirmou ao G1 que o número de vacinas corresponde a cerca de 19% do total de 21 milhões de doses da Coronavac aplicadas ao longo de toda a campanha de vacinação contra a Covid-19 e que “toda a rede está orientada sobre a importância do monitoramento de todas as pessoas vacinadas, independentemente do imunizante administrado”. Acrescentou, ainda, que o órgão irá aguardar o parecer das autoridades sanitárias para proceder com a distribuição de 1,5 milhão de doses da Coronavac entregues no dia 3.

Ainda conforme o G1, as Secretarias de Saúde de pelo menos 13 estados e do Distrito Federal confirmaram também terem recebido vacinas desses lotes e que entraram em contato com os municípios para suspender a aplicação. Cinco desses estados (Rio Grande do Norte, Paraíba, Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo) confirmaram que já haviam aplicado na população parte das doses recebidas desses lotes. A Secretaria de Saúde de São Paulo foi procurada pelo Comprova, mas não respondeu.

A Anvisa informou que, além do monitoramento feito pelo Ministério da Saúde, haverá um acompanhamento dessas pessoas por parte da própria agência. Ao Comprova, a assessoria de comunicação acrescentou que, durante a vigência da interdição, trabalhará na avaliação do eventual impacto para as pessoas que foram vacinadas com as doses.

Documentos

A reportagem também procurou o Butantan questionando, entre outras coisas, por que a Anvisa só foi notificada das irregularidades após a distribuição e aplicação de doses, quem faz o controle dos lotes que entram no país, em quais circunstâncias foram importadas as doses em desacordo com a autorização emergencial e se a situação é preocupante para aqueles que receberam a vacina.

Em nota, o Butantan não respondeu às questões específicas. Afirmou ter criado uma força-tarefa para esclarecer dúvidas da Anvisa sobre os lotes suspensos e informando que a primeira reunião sobre o assunto foi realizada na tarde do dia 6, com a participação do diretor-presidente da entidade, Dimas Covas, e da diretora de qualidade e assuntos regulatórios, Patrícia Meneguello.

Durante o encontro, diz a entidade, foram apresentados mais dados que demonstram a segurança e a qualidade dos imunizantes. “O objetivo do grupo é agilizar a liberação dos lotes o mais rapidamente possível para o PNI (Programa Nacional de Imunizações), considerando a urgência do contexto pandêmico. Os técnicos do Butantan vão continuar em constante contato com a Anvisa para pronto envio da documentação solicitada sobre a fábrica chinesa, que conta com certificação de boas práticas internacionais, a GMP (Good Manufacturing Practice)”, diz a nota.

A Anvisa, contudo, informou no dia 8 que os documentos apresentados na reunião não respondem às incertezas sobre o local de fabricação.

De acordo com o posicionamento, não foi apresentado relatório de inspeção emitido pela autoridade sanitária, essencial para a avaliação das condições de aprovação da planta, que podem incluir compromissos e condicionais para permitir a operação no local.

Já os formulários de não conformidades (documento que atesta o não atendimento de um requisito preestabelecido) apresentados reforçaram as preocupações da agência relacionadas às práticas assépticas e à rastreabilidade dos lotes, por não possuírem a identificação da autoridade emissora e a identificação de cargos dos signatários. “A Anvisa, por meio da sua Assessoria Internacional, já acionou o Ministério das Relações Exteriores para que essas informações sejam solicitadas à autoridade reguladora chinesa”, esclareceu o órgão.

O órgão federal também não considerou suficiente a análise de risco apresentada pelo instituto para garantir a segurança do processo fabril no novo local. “Tal análise não substitui uma inspeção da autoridade sanitária ou o relatório de inspeção sanitária. Somente as autoridades sanitárias possuem competência para atestar as boas práticas de um local de fabricação”.

O órgão destaca que cabe ao Butantan apresentar a documentação faltante, incluindo o relatório de inspeção emitido por autoridade sanitária para subsidiar a análise da Anvisa ou viabilizar a realização de inspeção presencial pela própria agência.

Paralelamente, visando acelerar a avaliação dos lotes interditados, a Anvisa diz ter iniciado os trâmites internos para realização da viagem de servidores para inspecionar o local de envase da vacina. A equipe inspetora já está designada e preparada para embarcar para a China na próxima semana.

Medidas cautelares

A Anvisa explica que as medidas cautelares não são decisões condenatórias em caráter punitivo, mas, sim, medidas sanitárias para evitar a exposição ao consumo e ao uso de produtos irregulares ou sob suspeita.

“As medidas cautelares também são um ato de precaução que visa proteger a saúde da população, sendo adotadas em caso de risco iminente à saúde, sem a prévia manifestação do interessado, fundamentadas nos termos da lei 6.437, de 20 de agosto de 1977, sendo aplicáveis para a ação de fiscalização de interdição cautelar”, destaca o órgão.

A interdição cautelar aplica-se aos casos em que “sejam flagrantes os indícios de alteração ou adulteração do produto, hipótese em que a interdição terá caráter preventivo ou de medida cautelar. Esta medida tem o prazo de 90 dias, conforme o artigo 23 da lei 6.437, de 20 de agosto de 1977”. Trata-se da lei que configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências.

Durante este período de 90 dias, além de tentar comprovar as condições da planta fabril, a Anvisa fará tratativas junto ao Instituto Butantan para a regularização desse novo local.

STF

A reportagem enviou perguntas à assessoria de comunicação do STF questionando se o órgão foi acionado sobre a aplicação, em São Paulo, de vacinas posteriormente interditadas pela Anvisa. Por e-mail, a instituição respondeu não ter localizado no sistema de consulta processual qualquer processo envolvendo o nome de João Doria.

Em um evento no ano passado, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, relembrou que o Judiciário só age quando provocado, sendo chamado para atuar em problemas constitucionais de leis promulgadas pelo Executivo ou aprovadas pelo Legislativo.

Discute-se, atualmente, por que o inquérito das fake news, que investiga a disseminação de afirmações falsas contra ministros do STF, é conduzido pela própria Corte. A investigação foi aberta em março de 2019, pelo então presidente do STF Dias Toffoli, sem provocação de outro órgão e sem a participação do Ministério Público.

Foi baseada, contudo, no artigo 42 do regimento interno da Corte, segundo o qual “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”. Toffoli avaliou que, embora os supostos crimes não tenham sido praticados no prédio do órgão, vitimizam os ministros, que são o tribunal.

Autor

O autor do tuíte é @nelsonpaffi. Com mais de 48 mil seguidores na rede social, ele se define como “linha política positivista. Justiça sem ideologia. Lei tem que ser cumprida. Desejo Brasil próspero livre dos corruptos. Perseguidor implacável a corruptos” e faz críticas ao STF.

Procurado, ele não retornou até a publicação da reportagem.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Projeto Comprova checa conteúdos de redes sociais sobre políticas públicas do governo federal, eleições e pandemia que alcancem uma grande viralização.

O tuíte é prejudicial, pois desinforma ao fazer um ataque ao STF e insinuar que a Corte foi negligente ao não fazer nada contra João Doria, omitindo que o Poder Judiciário não foi acionado neste caso. Além disso, dá a entender que as vacinas foram aplicadas após proibição da Anvisa, o que não ocorreu.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações disponíveis no dia 9 de setembro de 2021.

A investigação desse conteúdo foi feita por Correio de Carajás e piauí e publicada na quinta-feira (9) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 33 veículos na checagem de conteúdos sobre ​coronavírus, políticas públicas e eleições. Foi verificada por Folha, Poder360, GZH, Jornal do Commercio, Estadão, A Gazeta e Correio.

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