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Mortes na pandemia de Covid provocam luto anormal, dizem pesquisadoras

Perdas sucessivas de várias pessoas próximas, por exemplo, criam situações atípicas

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São Paulo

Em 15 de março de 2018, ocorreu o velório da vereadora Marielle Franco, que foi assassinada ao lado de seu motorista, Anderson Gomes, no Rio de Janeiro. Na escadaria da Câmara Municipal, milhares de pessoas se concentraram em luto pela perda da socióloga.

Nessa multidão estava Carla Rodrigues, professora de filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que já tinha vivenciado o luto de perto, quando seu marido morreu de câncer de pulmão em dezembro de 2015.

Esses dois acontecimentos foram importantes marcos na escrita do livro “O Luto entre Clínica e Política - Judith Butler para Além do Gênero”, assinado por Rodrigues e recém-lançado pela editora Autêntica. Na obra, a autora reflete sobre o pensamento da americana Judith Butler e aborda as peculiaridades do luto em contextos extremos, como o da pandemia de Covid-19.

Uma mulher sentada em uma cadeira com uma mesa a sua frente. Ao fundo, uma estante com livros.
Carla Rodrigues, professora de filosofia da UFRJ - Paula Giolito - 16.jul.2015

Para Butler, as diferentes formas de viver o luto demonstram as desigualdades sociais —enquanto algumas pessoas têm amplo direito de serem enlutadas, outras não o têm e, por isso, as suas mortes seriam mais naturalizadas.

A partir daí, é possível pensar que a morte de uma pessoa não é somente um acontecimento clínico, mas também algo que diz respeito à política e à ética, já que o modo de tratar essas perdas varia a depender de quem morreu, diz Rodrigues.

Ela afirma que isso ficou muito evidente durante a pandemia, porque desde cedo houve o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou que o vírus iria se disseminar e que a morte seria algo natural. Isso, porém, não levou em consideração a desigualdade social no país, afirma. Assim, algumas pessoas ficaram mais suscetíveis a infecção e morte por Covid.

Para Rodrigues, “esse discurso só serviu para tentar esconder uma mistura de incompetência e política de descaso” pelas pessoas negras e pela população carcerária, entre outros setores da sociedade.

A razão para isso acontecer, segundo ela, é que essas parcelas da população brasileira já tinham suas vidas desprezadas antes mesmo da pandemia. No livro, a autora remete ao período colonial para mostrar que a violência praticada contra povos indígenas e a população escravizada naturalizou o desprezo por essas vidas e chegou até o Brasil contemporâneo.

O luto no contexto da Covid ainda traz uma peculiaridade que, para Rodrigues, se assemelha à de uma situação de guerra. A experiência de perder sucessivamente diversos entes queridos, como aconteceu com algumas famílias, gera situações muito específicas e diferentes do normal.

“Usando um exemplo [da morte do pai seguida rapidamente pela da mãe de alguém], eu me arriscaria a dizer que tem três experiências traumáticas: a perda do pai, a da mãe e a dos dois ao mesmo tempo. Essas perdas se sobrepõem, se misturam e, em muitos casos, dificultam que o sujeito consiga se refazer depois de situações como essas”, afirma.

Outra referência na área, Maria Helena Pereira Franco, professora de psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e autora do livro “O Luto no Século XXI: uma Compreensão Abrangente do Fenômeno” (Summus Editorial), afirma que, normalmente, a pessoa enlutada recorreria a redes de suporte pessoais, como família e amigos.

No entanto, na pandemia, essas próprias redes estão sendo esfaceladas por causa do alto índice de mortes que o Brasil enfrenta. “Algumas pessoas chegam e falam ‘olha, eu estou enlutado porque morreram minha mãe, meu tio, meu irmão e meu melhor amigo’”, afirma.

Em casos assim, o luto é maior porque, diante da perda de várias pessoas queridas, o sujeito fica sem ter a quem recorrer. Nesse cenário, o trabalho dos profissionais da área da saúde mental também é afetado, com demandas diferentes daquelas com as quais estão familiarizados.

“[A pandemia] requer mais do profissional, porque as pessoas têm apresentado um sofrimento muito grande. Não dá para a gente lidar da mesma maneira, porque as demandas são mais intensas”, diz Franco.

Uma mulher com uma blusa preta está sentada. Na sua frente, ela segura alguns livros.
Maria Helena Pereira Franco, professora de psicologia da PUC-SP - Specio Histórias em imagens

No livro, lançado há poucos meses, a autora explica que o luto é um processo longo —e isso não deve ser visto como algo patológico. “Um luto normal é doloroso, demanda tempo, a pessoa revisita as memórias, toma decisões sem certezas. É uma experiência multifacetada que afeta o indivíduo em muitos aspectos.”

As dificuldades do luto na pandemia também ficam evidentes quando se considera a suspensão de alguns rituais como velórios e enterros com participação de familiares e amigos. Para Franco, esses eventos organizam a experiência de perder uma pessoa amada diante de uma circunstância de grande desorganização, como é o caso da morte.

Ela explica que “usar o recurso da tecnologia [para substituir as cerimônias fúnebres presenciais] foi uma possibilidade [...] que ajudou e foi benéfica para algumas pessoas”, mas ressalta que essas alternativas virtuais não têm o mesmo impacto que os encontros presenciais.

Em seu livro, Franco faz ainda uma tentativa de entender o luto levando em consideração todo o país, suas raízes históricas e a multiplicidade de culturas. Ela afirma que, para compreender esse fenômeno, é necessário levar em consideração a enorme diversidade cultural brasileira.

Diante das diferenças regionais, os estados brasileiros deram respostas e tiveram desempenhos variados no enfrentamento da pandemia e isso, por consequência, acarreta uma diversidade na vivência do luto.

Rodrigues, em sua obra, também reflete sobre o luto em um contexto nacional. Ela afirma que esse fenômeno não é algo exclusivo do ambiente familiar e o reconhecimento dos falecidos pela comunidade é essencial para valorizar a memória e a vida dessas pessoas.

O Brasil, porém, ainda tem uma característica de grande esquecimento para com seus mortos, ela alerta. Um exemplo dado pela professora são os assassinados durante a ditadura militar. “Os mortos pela ditadura militar ainda estão em processo de luto se formos pensar que o relatório da Comissão Nacional da Verdade foi publicado somente em 2014.”

Agora, ela ressalta, o desafio de lidar com a memória será ainda maior, pela dimensão da Covid na história do país. “A sociedade brasileira está marcada pela perda de 600 mil pessoas por uma pandemia que poderia ter sido diferente”, conclui.

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