Pandemia aumenta mortes por demência em negros, enquanto taxa cai entre brancos

Acesso precário a serviços de saúde e estresse estão entre os fatores que explicam a diferença na mortalidade, segundo pesquisadores

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São Paulo

Mortes de pessoas pretas e pardas causadas por demência aumentaram aproximadamente 15 pontos percentuais no Brasil em 2020, aponta um novo estudo. Para brancos, porém, a taxa de mortalidade diminuiu (-1,4) na comparação entre 2019, ano pré-pandemia, e o período seguinte, dominado pela crise sanitária provocada pelo coronavírus.

Como possíveis explicações para essa discrepância, os pesquisadores apontam fatores de risco a que a população negra está mais suscetível e que pioraram com a Covid-19.

Mapa do cérebro na plataforma Neroglancer mostra neurônios e sinapses
Neurônios e sinapses vistos em mapa do cérebro da plataforma Neroglancer - Reprodução/Neuroglancer

Realizada por cientistas da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com a colaboração da Universidade de Queensland, na Austrália, a pesquisa comparou os dados disponíveis pelo SUS (Sistema Único de Saúde) sobre demência em todo o país entre os anos de 2019 e 2020. O estudo foi publicado nesta quarta-feira (6) na revista científica Cadernos de Saúde Pública.

A demência é um quadro clínico que tem maior prevalência com o avançar da idade e corresponde a uma variedade de doenças, como Alzheimer e demência vascular, explica Natan Feter, doutor em educação física pela UFPel e um dos autores do estudo.

No Brasil, aproximadamente 1 milhão de pessoas têm diagnóstico de demência. Em comparação ao resto do mundo, em um cenário hipotético em que todas as nações tivessem a mesma expectativa de vida, o país seria o segundo com maior prevalência de demência, conta Feter. O primeiro seria a Turquia.

A pesquisa se concentrou em três aspectos da ocorrência de demência em território brasileiro no contexto da Covid-19: as hospitalizações pela doença, os custos médios para seu tratamento e a taxa de mortalidade. A partir daí, foram traçadas análises para as populações preta, parda e branca.

Quanto à hospitalização e aos custos de tratamento, foi constatado que houve diminuição no último ano para todos os brasileiros. No entanto, para pessoas pretas, a mortalidade por demência saltou, em pontos percentuais, de 13,9 para 22,7 entre 2019 e 2020. No caso de pessoas pardas, esse aumento foi de 14 para 20.

“Alguns estudos, tanto antes quanto durante a pandemia, já tinham alertado que a população negra, não só no Brasil, mas especialmente nos Estados Unidos, tinha um maior risco para casos e óbitos por demência quando se compara com outros grupos étnicos”, afirma Feter.

Para Feter, um acúmulo de fatores pode explicar o aumento dessa taxa de mortalidade em pessoas negras durante a pandemia. Uma das razões seria o fato de que essa parcela da população foi mais afetada economicamente durante a disseminação do coronavírus. Isso tende a elevar o estresse e outros problemas de saúde mental, considerados importantes fatores de risco para os quadros de demência.

Outra hipótese para explicar esse incremento nos óbitos é a dificuldade que a população negra tem em acessar sistemas de saúde, principalmente com o aumento de casos de Covid-19. “As pessoas, mesmo precisando de uma consulta, deixaram de buscar o serviço durante a pandemia”, avalia.

Feter ressalta ainda que estudos anteriores já demonstraram que as pessoas normalmente buscam prioritariamente serviços de emergência em casos de demência —o que também mostra a baixa adesão a um tratamento adequado e precoce da doença.

Isso faz com que o diagnóstico da demência demore mais a ser realizado. Esse atraso, por consequência, prejudica o início do tratamento e aumenta as chances de morte.

Feter também aponta que outros fatores de risco para demência que não necessariamente se relacionam com a pandemia, como diabetes e hipertensão, já tinham maior prevalência entre a população negra.

“Quando nós temos de 40% a 50% dos casos de demência atribuíveis a fatores de risco modificáveis, e sabemos que a prevalência desses fatores de risco é maior na população negra, não é tão surpreendente assim que essas pessoas estejam morrendo mais por essa doença”, destaca.

E, como são comorbidades que também elevam as chances de morrer com a Covid-19, "então a população negra com demência têm uma dupla carga de fatores de risco [na pandemia]”, afirma o pesquisador.

O estudo também observou particularidades regionais. Foi constatado, por exemplo, que na região Sul houve um aumento nas hospitalizações e nos custos médios do tratamento da doença e uma redução na taxa de mortalidade. Já no Nordeste, a hospitalização subiu, enquanto os custos e a mortalidade diminuíram.

No caso de mortalidades, foram analisados dados de quatro regiões —o Norte do país ficou de fora por falta de informações suficientes para o trabalho.

Feter afirma que as métricas se comportaram de forma diferente a depender da região analisada, mas mesmo assim "a disparidade [racial] é bastante marcante" em todo o Brasil. "Por exemplo, das quatro regiões analisadas, duas [Sul e Centro-Oeste] diminuíram a taxa de mortalidade em pessoas brancas, só que todas tiveram aumento dessa taxa em pessoas pretas e pardas.”

Para lidar com esse cenário, o pesquisador aponta a importância de implantar políticas públicas para diminuir a prevalência desses fatores de risco na população negra e, consequentemente, reduzir a mortalidade por demência.

Um exemplo seria a criação de um plano nacional de combate à demência, o que, na América Latina, é uma realidade somente no Chile.

“O Brasil não tem um plano nacional de combate à demência porque ele está estagnado no Senado Federal, sem uma previsão de continuidade. Então, numa conversa para estruturar esse plano, seria necessário incluir como diminuir a disparidade étnico-racial”, afirma. ​

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