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Artigo que afirmava que lockdown não evita morte por Covid é 'despublicado'

Revista diz que não tem mais 'confiança de que as conclusões apresentadas contam com embasamento adequado'

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São Carlos (SP)

Um estudo que teria mostrado que ficar em casa não ajudou a diminuir o número de mortes por Covid-19 mundo afora acaba de ser retratado, ou seja, "despublicado" pelo periódico científico no qual a pesquisa tinha saído originalmente. A medida serve para indicar que as conclusões do trabalho não podem mais ser consideradas confiáveis.

Assinado por quatro pesquisadores da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, também no Rio Grande do Sul), o estudo original saiu em 5 de março de 2021, na revista especializada Scientific Reports, e rapidamente chamou a atenção de políticos e ativistas contrários a medidas que restringissem a mobilidade durante a pandemia. Em pouco tempo, o link contendo a análise atingiu quase 400 mil acessos, algo raríssimo para a grande maioria das pesquisas científicas.

No alerta de retratação do artigo, entretanto, a revista Scientific Reports afirma: "Os editores não têm mais confiança de que as conclusões apresentadas contam com embasamento adequado."

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Rua São Caetano, conhecida por lojas de vestidos de noiva, fica vazia durante restrições do governo Doria, em São Paulo (SP) - Keiny Andrade - 13.abr.2021/Folhapress

O trabalho, que tem como primeiro autor o médico Ricardo Savaris, do Departamento de Cirurgia da UFRGS, usou dados de mobilidade registrados em celulares, por meio da plataforma do Google, para tentar estimar, em diversas regiões do mundo, como o comportamento das pessoas foi alterado pela pandemia –em geral, por causa de medidas governamentais, como lockdowns.

Esses dados foram cruzados com os de mortes por Covid-19 nas mesmas áreas. Na análise, a equipe gaúcha comparou pares de regiões –uma com mudanças significativas na mobilidade, supostamente indicando maior tempo das pessoas em casa, e outra sem. Eles usaram a diferença entre os índices de permanência em casa, de um lado, e a diferença entre o número de mortes por milhão de habitantes, de outro, para estimar os efeitos das restrições.

Chegaram, então, à conclusão de que, em 98% das comparações, não havia associação significativa entre as duas coisas –ou seja, ficar em casa quase nunca parecia afetar a probabilidade de aumento das mortes por Covid-19.

Esse resultado correu o mundo, mas as críticas à metodologia e às conclusões do trabalho também apareceram rapidamente. A Scientific Reports logo publicou uma nota de preocupação (em 11 de março, menos de uma semana após a publicação do artigo original) indicando que as conclusões da pesquisa estavam sendo contestadas. E, pouco antes da retratação final, duas análises contrárias às conclusões da pesquisa brasileira foram publicadas pela mesma revista.

Uma delas foi coordenada por Gideon Meyerowitz-Katz, da Universidade de Wollongong, na Austrália. Ele e seus colegas apontaram, entre outras coisas, o fato de que os dados de mobilidade usados no estudo original provavelmente estão longe de reproduzir o que aconteceu na população como um todo. Isso acontece porque eles só podem ser coletados em celulares Android nos quais estava ativada uma funcionalidade específica (e opcional) que registra os movimentos do usuário

. Além disso, o estudo excluiu todos os países com menos de 100 mortes por Covid-19, deixando de lado países como Nova Zelândia e Vietnã, que tomaram medidas rápidas e duras para conter a pandemia.

No entanto, de acordo com eles, o maior problema foi a metodologia estatística da pesquisa original. Meyerowitz-Katz e seus colegas resolveram testá-la usando dados criados por computador, os quais mostravam claramente um efeito muito grande da mobilidade restrita diminuindo a mortalidade.

Era algo que deveria aparecer na análise estatística usando os métodos da equipe gaúcha, mas isso simplesmente não aconteceu. Seria um sinal de que o estudo brasileiro não tinha sido projetado adequadamente do ponto de vista matemático.

A outra análise, feita pelo economista brasileiro Carlos Góes, doutorando da Universidade da Califórnia em San Diego, indicou a presença de problemas ainda mais graves no trabalho original. Segundo ele, o método utilizado –verificar a diferença entre um país A, com restrições de mobilidade, e um país B, sem restrições, e os números de mortes entre cada um deles– não passa de uma espécie de média entre os países. Com isso, o resultado quase sempre vai indicar que não existe associação estatística entre ficar em casa e a situação das mortes em cada região.

Ambos as críticas são citadas diretamente na nota de retratação da Scientific Reports. A nota, entretanto, diz também que Savaris e seus colegas não concordam com a medida. Em mensagem enviada ao blog Retraction Watch, que acompanha casos de retratação de artigos científicos, o médico da UFRGS criticou a "despublicação".

"Foi uma péssima decisão por parte dos editores. A retratação se baseou em dados simulados, eles alteraram a metodologia e os revisores [responsáveis por analisar o artigo original]", declarou Savaris. Procurado, pela Folha, ele não respondeu.

A assessoria de imprensa do grupo Springer Nature, responsável pela publicação da revista Scientific Reports, disse à Folha que o processo de retratação do artigo seguiu o trâmite normal desses casos. "Em geral, quando alguém manifesta dúvidas sobre artigos que publicamos, sejam os autores originais ou outros pesquisadores e leitores, avaliamos o caso cuidadosamente, seguindo um processo estabelecido, consultando os autores e, quando necessário, buscando aconselhando de revisores e outros especialistas externos. Tais questões muitas vezes são complexas, o que pode fazer com que leve tempo para que os editores e os autores consigam elucidá-las completamente", diz o comunicado oficial.

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