Frase de pesquisador americano de 2016 não indica que chineses provocaram pandemia

É enganoso conteúdo de post viral que usa trecho de fala do zoólogo americano Peter Daszak

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São Paulo

Um card com uma frase destacada do zoólogo norte-americano Peter Daszak circula no Instagram e engana ao sugerir que o pesquisador afirmou que cientistas chineses manipularam o coronavírus em laboratório para que ele se conectasse a células humanas e que isso poderia levar a uma pandemia.

A frase, verificada pelo Projeto Comprova e destacada na peça de desinformação, foi dita em 2016 durante um evento sobre o futuro das pandemias e descreve o trabalho de prospecção de vírus patógenos (capazes de causar doenças), prática comum na tentativa de identificar antecipadamente casos que podem provocar eventos zoonóticos (transmissão entre espécies).

Daszak foi um dos palestrantes de um evento ocorrido em fevereiro daquele ano e promovido pela The New York Academy of Medicine, com patrocínio do Pulitzer Center on Crisis Reporting. Na ocasião, a jornalista científica Sonia Shah, que lançava o livro "Pandemic: Tracking Contagions from Cholera to Ebola and Beyond", mediou o debate entre pesquisadores e jornalistas.

Pessoas em movimento com imagem que parece uma simulação de skyline de prédios ao fundo em foto noturna
Movimento em Xangai, na China; diferentemente do que afirma conteúdo enganoso, chineses não provocaram a pandemia - Aly Song - 10.mai.2021/Reuterso

Peter Daszak falou sobre as condições e os locais mais propícios ao surgimento das próximas pandemias, destacando regiões com muitos animais selvagens e onde a comunidade tinha acesso a esses animais. A frase destacada, na verdade, é apenas um trecho de poucos segundos dentro de uma resposta que o pesquisador dá a uma pergunta da plateia – ele explica por que morcegos e outros mamíferos selvagens seriam uma provável origem de uma nova pandemia.

O post foi publicado no perfil do Instagram do youtuber Ed Raposo. Procurado pela reportagem, ele compartilhou o link de uma reportagem do site The Gateway Pundit, portal conhecido por disseminar notícias falsas e teorias da conspiração. Disse: "Aí está a matéria. É só descer e assistir ao vídeo original em ingles". E completou: "obrigada por me dar a oportunidade pra falar que falei a verdade".

O The Gateway Pundit é um site conservador estadunidense, fundado em 2004 por Jim Hoft. No início deste ano, o Twitter suspendeu a conta @gatewaypundit sob justificativa de que o perfil violou regras da plataforma, conforme publicado pelo site da Forbes em fevereiro. A reportagem cita estudo do The German Marshall Fund of the United States (organização apartidária que defende cooperação entre Estados Unidos e Europa), que apontou o The Gateway Pundit na liderança entre fontes de desinformação com contas verificadas no Twitter em 2020. Antes da suspensão, o perfil tinha 375 mil seguidores.

Este conteúdo foi considerado enganoso porque retira o conteúdo de seu contexto original, de modo que seu significado é modificado.

Como verificamos?

Primeiramente, o Comprova buscou o vídeo original de onde a fala de Daszak, destacada no card publicado no Instagram, foi retirada. Com o vídeo em mãos, a reportagem assistiu ao momento da fala completa do zoólogo e também as outras participações dele no evento, de modo a localizar o trecho exato utilizado no post.

Em seguida, foram procurados o pesquisador e o organizador do evento – a The New York Academy of Medicine, que encaminhou um link para uma descrição do evento, ocorrido em fevereiro de 2016.

Também foram ouvidos os pesquisadores Thiago Rangel, biólogo e pesquisador do ICB (Instituto de Ciências Biológicas) da UFG (Universidade Federal de Goiás), e Mellanie Fontes-Dutra, biomédica e pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e divulgadora científica pela Rede Análise Covid-19.

Por fim, o Comprova entrou em contato com o autor do post, o youtuber Ed Raposo.

Verificação

Quem é Peter Daszak?

Peter Daszak é zoólogo e presidente da EcoHealth Alliance, uma instituição com sede nos Estados Unidos que desenvolve programas de pesquisa e extensão relacionados à saúde no mundo. Segundo a biografia publicada no site da EcoHealth, o trabalho do cientista tem colaborado para identificar e prever o impacto de doenças emergentes.

Daszak é membro da Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos e presidente do fórum da Nasem (National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine) sobre Ameaças Microbianas. A reportagem tentou contato com Daszak por meio de email divulgado no site da EcoHealth Alliance, mas não houve retorno até a publicação.

O que ele disse, onde e quando?

A fala de Peter Daszak que está sendo usada no post verificado foi dita no dia 23 de fevereiro de 2016, durante um fórum promovido pela The New York Academy of Medicine e pelo Pulitzer Center on Crisis Reporting, chamado "De onde virá a próxima pandemia?". O fórum aconteceu junto com o lançamento do livro "Pandemic: Tracking Contagions from Cholera to Ebola and Beyond", da jornalista científica Sonia Shah.

Foi Shah quem mediou o fórum, que aconteceu em Nova York, na sede da Academia, e contou com as presenças, além de Peter Daszak, também do professor da Universidade de Columbia W. Ian Lipkin; do jornalista e cineasta Carl Gierstorfer; da jornalista científica Amy Maxmen; e de Lisa O’Sullivan, diretora da The New York Academy of Medicine.

No site da entidade não há uma cobertura sobre o evento, e no do Pulitzer Center não existem registros para eventos anteriores a 2017. Mas, no dia 28 de março de 2016, mais de um mês após o fórum, a New York Academy of Medicine publicou um link para o vídeo completo do evento, no site da C-Span, uma organização sem fins lucrativos criada em 1979 para fornecer uma cobertura completa do Congresso dos Estados Unidos. Desde 1987, a C-Span possui uma videoteca com todo o seu acervo. O fórum sobre o futuro das pandemias faz parte de uma série de eventos de relações públicas.

O vídeo completo do fórum teve mais de 10 mil visualizações, mas a ferramenta permite que usuários façam cortes em determinadas partes. O trecho que contém a fala utilizada no post verificado teve 2.095 visualizações até a tarde do dia 3 de dezembro.

Ao longo do debate, Peter Daszak fala sobre as condições e os locais mais propícios a serem o palco do surgimento das próximas pandemias e menciona comunidades com um grande número de animais selvagens e onde as pessoas têm contato direto com esses animais. Ele menciona a China, mas também outros locais, como países africanos. A fala original não é a mesma utilizada no post verificado. Embora use aspas, o autor utiliza outras palavras para resumir o que Peter Daszak diz quando responde a uma pergunta da plateia sobre morcegos e outros mamíferos abrigarem vírus e como eles poderiam infectar humanos:

"Por que mamíferos? Se fizermos a matemática nos eventos de doença emergente anteriores, a vasta maioria dos vírus vêm de animais, tendem a vir de animais. Mamíferos cobrem a vasta maioria", começa Daszak. Mais adiante, ele explica como é possível identificar quais dos vírus presentes nesses animais seriam capazes de infectar humanos:

"Em primeiro lugar, nós olhamos apenas para famílias virais que incluem aquelas que chegaram às pessoas vindas de animais. Nós reduzimos a partir daí. Então, quando você obtém uma sequência que se parece com um patógeno desagradável conhecido, assim como fez com Sars, nós encontramos vírus em morcegos. Alguns deles pareciam muito semelhantes ao Sars. Se sequenciamos a proteína spike, a proteína que se liga às células – bom, eu não fiz esse trabalho, mas meus colegas na China fizeram – então você cria pseudo-partículas e insere a proteína spike desses vírus para ver se ela se ela se combina com as células humanas. A cada passo desse, você se aproxima cada vez mais para que o vírus possa se tornar patogênico nas pessoas", explica.

O biólogo Thiago Rangel afirma que, no vídeo, Daszak descreve a prospecção de vírus patógenos, prática comum na tentativa de identificar antecipadamente casos que podem provocar eventos zoonóticos.

Rangel explica que os morcegos estão entre os mamíferos que abrigam maior diversidade de vírus, organismos que passam por muitas mutações. No vídeo, Daszak narra o isolamento de vírus de amostras de morcegos. Para identificar quão patógenos são, diz Rangel, é preciso verificar se eles se anexam a células humanas. "Isso se faz em laboratório, sintetizando as proteínas spike, que estão na membrana do vírus", afirma o professor.

No vídeo, Daszak acrescenta que "colegas da China fizeram isso". Rangel explica que a China tem trabalho e estudo avançados nesta área e instituições de diversos países do mundo terceirizam esse serviço para laboratórios do país, inclusive o Brasil. Segundo o biólogo, ao citar a participação de "colegas chineses" no trabalho de prospecção de vírus patógenos, Daszak provavelmente está se referindo a uma parceria de pesquisa internacional, o que é recorrente no meio científico. Conforme ele, a fala de Daszak não tem relação alguma com a criação de um vírus ou pandemia.

"Ele faz parte da pesquisa, mas não é o responsável pela parte de genética molecular. Ele está dizendo como se faz (prospecção de possíveis vírus patógenos) e isso não choca cientista nenhum no mundo. Todo mundo sabe que é assim que funciona", afirma Rangel.

Manipulação?

Em contato com a reportagem, Mellanie Fontes-Dutra, biomédica e pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e divulgadora científica pela Rede Análise Covid-19, diz que não se pode falar em manipulação do vírus.

"Não faz sentido nada disso porque cada vez mais a gente está vendo evidências de que o Sars-CoV-2 veio de um zoonótico, ou seja, o pulo da espécie animal para a nossa espécie", afirma.

A pesquisadora explica que "existem alguns coronavírus encontrados em morcegos que são muito parecidos com o Sars-CoV-2".

Melanie ressalta que recentemente o biólogo evolucionista canadense e professor e chefe do departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade do Arizona, Michael Worobey, publicou um artigo na revista científica Science fazendo todo o retrospecto da origem da Covid-19 e como pode ter iniciado a pandemia, encontrando o paciente zero.

"A gente tem um conjunto de evidências apontando para a origem natural do vírus", aponta.

Ligação com Anthony Fauci

A postagem do The Gateway Pundit, que serviu de fonte para o post aqui verificado, explora suposta ligação profissional entre Peter Daszak e o infectologista Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas) dos Estados Unidos e figura conhecida por prestar assessoria à Casa Branca em assuntos relacionados à pandemia.

O Comprova verificou em junho deste ano que publicações nas redes sociais tiraram de contexto emails do infectologista sobre máscaras e origem do coronavírus. As correspondências foram obtidas por jornalistas por meio da Lei de Acesso à Informação.

Uma das mensagens contém conversa entre Fauci e Daszak, em que o zoólogo agradece o médico por declarações públicas sobre o coronavírus ter surgido na natureza. Fauci também já falou publicamente sobre a necessidade de continuar a investigação sobre a origem da doença.

A reportagem mostrou que Fauci responde a Daszak: "Peter, muito obrigado por sua gentil mensagem". O site Politz, responsável por publicações enganosas relacionadas aos emails de Fauci, argumentou que a conversa entre os dois profissionais é a prova de uma operação para encobrir a verdadeira origem do Sars-CoV-2, mas não há evidências que confirmem esta afirmação.

O portal Buzzfeed publicou reportagem no dia 1º de junho sobre a lista de emails de Fauci. As mensagens são de janeiro a junho de 2020. No período, Fauci e Daszak se corresponderam apenas uma vez.

A reportagem do Comprova mostrou também que Daszak já foi questionado nas redes sociais por pesquisa anterior com o Instituto de Virologia de Wuhan, localizado na cidade chinesa onde os primeiros casos de Covid-19 foram registrados. Uma parte do estudo foi financiado pelo Niaid, dirigido por Fauci. A pesquisa era relacionada à análise de coronavírus surgidos em morcegos.

Neste contexto, surgiram teorias de que os estudos incluíram técnicas de "ganho de função", prática em que cientistas modificam geneticamente patógenos para torná-los mais perigosos ou mais transmissíveis, com o objetivo de prever como aquele organismo pode se comportar. A teoria foi negada pelo NIAID e pela EcoHealth Alliance, que tem Daszak no comando.

O site de fact-checking americano Politifact verificou em fevereiro deste ano a concessão de bolsa de US$ 3,4 milhões à EcoHealth Alliance. Houve parceria com o laboratório chinês para análise de coronavírus originados em morcegos em outra cidade do país, Yunnan. Fauci informou que US$ 600 mil foram destinados ao Instituto de Virologia de Wuhan.

O Politifact apurou que o financiamento do governo americano ao laboratório chinês existiu, mas não há provas de que houve procedimentos de ganho de função em coronavírus de morcegos.

Sobre o autor

O autor do post checado nesta verificação é Ed Raposo, um youtuber apoiador do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Em seu perfil do Instagram, que conta com mais de 35,6 mil seguidores, define fazer "jornalismo conservador, trazendo a informação de forma objetiva".

No Youtube, tem 217 mil inscritos. Na plataforma de vídeos, a descrição de seu perfil é "canal conservador comandado por Ed Raposo, um grande admirador de Bolsonaro, e que tem como objetivo primário combater a desinformação, as mentiras e as distorções propagadas insistentemente pela grande mídia e pelos detratores do Presidente e de sua equipe".

O youtuber já esteve associado a polêmicas relacionadas à desinformação antes. Em agosto de 2021, a Justiça determinou que Ed Raposo indenize o deputado federal Marcelo Freixo (PSB) por distribuir conteúdos com mentiras sobre o parlamentar. Segundo O Globo, em janeiro de 2020, o criador de conteúdo conservador publicou um vídeo afirmando que "Freixo apoia o tráfico de drogas e que o PSOL intimida policiais porque tem as justiças nas mãos".

O Comprova entrou em contato com Ed Raposo. O youtuber compartilhou o link de uma reportagem do site The Gateway Pundit, portal conhecido por disseminar notícias falsas e teorias da conspiração. Disse: "Aí está a matéria. É só descer e assistir ao vídeo original em ingles". E completou: "obrigada por me dar a oportunidade pra falar que falei a verdade".

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova checa conteúdos suspeitos sobre governo federal, pandemia e eleições que tenham atingido alto grau de viralização. O post checado teve ao menos 1,6 mil interações no Instagram, segundo a ferramenta de análise de redes CrowdTangle.

Ao usar o trecho de uma fala feita há seis anos para afirmar que cientistas chineses manipularam um vírus em laboratório para provocar a atual pandemia, o post reforça a teoria de que a China é culpada pela pandemia e que cientistas deveriam ser presos.

O Comprova já fez outras verificações sobre a suposta criação do coronavírus em laboratório, como a que descontextualizava os emails de Anthony Fauci, a que afirmava enganosamente que emails de Fauci provavam a origem do coronavírus em laboratório e a que enganava ao dizer que a China havia testado o Sars-CoV-2 como arma biológica.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado de contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações disponíveis no dia 7 de dezembro de 2021.

A investigação desse conteúdo foi feita por O Popular, Estadão e Poder360 e publicada na terça-feira (7) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 33 veículos na checagem de conteúdos sobre ​coronavírus, políticas públicas e eleições. Foi verificada por Folha, Jornal do Commercio e Correio de Carajás.

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