Na falta de remédio para epilepsia, Ministério da Saúde propõe reduzir dosagem

Para associação de pacientes e médicos da área, proposta é descabida e coloca em risco os doentes

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São Paulo

Diante da falta de um dos principais medicamentos para o controle da epilepsia, o Ministério da Saúde está propondo distribuir o mesmo remédio com uma dosagem equivalente a um terço da que está em falta (de 750 mg para 250 mg).

A proposta de troca consta em ofício encaminhado às Secretarias de Estado da Saúde e provocou indignação de pacientes, de familiares e da classe médica, que iniciaram um movimento de repúdio nas redes sociais.

Mãe de criança com epilepsia em campanha nas redes sociais sobre a falta de medicação - Associação Brasileira de Epilepsia

O medicamento é o levetiracetam, que foi incluído no rol das medicações para epilepsia no SUS em 2017, mas foi só foi disponibilizado em 2020 no SUS. Nos EUA e na Europa, o remédio está disponível há pelo menos 20 anos.

No ofício, o Ministério da Saúde reconhece a falta da medicação na apresentação de 750 mg (maior dose em comprimidos), alega que o consumo foi maior do que a expectativa, diz que um processo licitatório para a compra do remédio fracassou em setembro, mas que outro está em curso.

O ministério alega ainda que tem um "razoável" estoque do medicamento levetiracetam 250 mg, e se propõe a enviá-lo às secretarias estaduais para "viabilização da troca/substituição da terapia medicamentosa dos pacientes em tratamento com levetiracetam 750 mg, a critério do médico prescritor".

No último dia 22, a ABE (Associação Brasileira de Epilepsia) encaminhou uma notificação ao Ministério da Saúde em que classifica o desabastecimento e a proposta de troca como inaceitáveis. "Representa uma negligência do governo frente aos pacientes com epilepsia, colocando em risco o seu tratamento e até mesmo a vida, além de sobrecarregar o sistema com mudança de última hora."

Segundo o neurologista Lecio Figueira Pinto, coordenador do ambulatório de epilepsia de adultos do Hospital das Clínicas, a proposta do ministério é descabida por várias razões, começando pelo fato de que dificilmente existe estoque para suprir a alta demanda pelo medicamento. "Rapidamente acabará a dosagem de 250 mg e teremos outro problema, aguardando a compra da outra dosagem e desfavorecendo novamente os pacientes."

Ele afirma que essas trocas nas dosagens de comprimidos podem confundir aos pacientes, levar a erros e reduzir adesão ao tratamento. "Isso já foi estudado e comprovado em trabalhos científicos."

No ofício, o ministério também diz que haverá necessidade de nova documentação, como laudo de solicitação, avaliação, autorização, LME (laudo de medicamento especializado) e receita, para todos os pacientes que, por orientação médica, tiverem indicação para a troca/substituição do levetiracetam 750 mg pelo de 250 mg.

"Essa orientação é incompatível com os próprios recursos disponibilizados para atendimento das pessoas com epilepsia no SUS. Isso implicará em necessidade de procura aos médicos e unidades de atendimento, para troca de laudo médico e receitas. É trabalhoso, consumirá tempo inexistente em um sistema de saúde sobrecarregado que temos", explica o neurologista.

Sem contar o fato de que existe uma escassez desses especialistas no SUS. Na página da ABE no Instagram, há vários relatos de pacientes sobre as dificuldades de agendamentos de consultas com neurologistas.

Mãe e filha participam de campanha nas redes sociais sobre a falta de medicação para epilepsia - Associação Brasileira de Epilepsia

Marcia Lima, de Vila Velha (ES), por exemplo, diz que está há três anos à espera de uma consulta com um neurologista para trocar a medicação e tentar ter mais controle das crises epiléticas. "Estou há mais de cinco anos sem ver um médico especialista."

Figueira Pinto lembra que, para piorar, a proposta de troca acontece no final de ano, quando há limitação ainda maior de acesso aos serviços de saúde devido aos feriados e recessos. "Mesmo que o paciente consiga um médico para a troca de receitas, deverá dar entrada e aguardar dias para que tenha a liberação da nova dosagem."

Segundo Maria Alice Susemihl, presidente da ABE, a falta do levetiracetam 750 mg ocorre no país todo. A compra é centralizada no Ministério da Saúde. "Eles não fizeram a compra no tempo certo, só foram fazer quando acabou o estoque. Isso impactou o país inteiro."

No ofício encaminhado às secretarias da saúde, o ministério diz que há outras terapias medicamentosas para a epilepsia e que, após o fracasso do processo licitatório para a compra do levetiracetam 750 mg, um novo está em fase de análise da documentação técnica.

"A despeito dos esforços e busca constante pela celeridade, as referidas tratativas aquisitivas exigiram passagem de um lapso atemporal significativo, que trouxe impactos ao fornecimento do medicamento à rede SUS", diz um trecho do ofício.

No país, a estimativa é que existam 3 milhões de pessoas com epilepsia. A doença pode ocorrer por distúrbio genético ou resultado de lesões cerebrais adquirida, como problemas no parto, traumatismo, acidente vascular cerebral ou mesmo doenças como a neurocisticercose (infecção do sistema nervoso central).

Para Susemihl, tão absurdo quanto o desabastecimento é a proposta de troca da posologia que o Ministério da Saúde fez às secretarias. "Não tem como interromper um fármaco de uma pessoa com epilepsia dessa forma. Teria que fazer o desmame do medicamento para tentar entrar com outro."

Ela conta que muitos pacientes estão tendo convulsões pela falta do remédio. Nas farmácias, o medicamento custa em torno de R$ 300 a caixa. "É bastante grave a situação", diz.

Paciente com epilepsia protesta contra a falta de medicação no SUS - Associação Brasileira de Epilepsia

Nas redes sociais, pacientes e familiares têm se mobilizado por meio da hashtag #SOSEpilepsia e reunindo assinaturas para uma petição online que denuncia a desassistência da epilepsia.

Jéssica Ribeiro diz que está há três meses sem tomar o medicamento porque não encontra mais na farmácia de alto custo do SUS na sua cidade. Até setembro, ela tomava dois comprimidos de 750 mg por dia.

Uma mãe de Navegantes (RS) afirma que começou a fazer cucas (doce alemão) para ajudar na compra do remédio para o filho. Tainá Gomes diz que gasta R$ 300 por mês a medicação, mas que ficou sem dinheiro e teve que parar. "Tive várias crises de dissociação, mas, graças a Deus, não tive crise convulsiva."

O neurologista Figueira Pinto diz que, por ser um fármaco com mecanismo diferente, sem interações medicamentosas e seguro em mulheres que desejam engravidar, o levetiracetam rapidamente tornou-se muito utilizado, e o Ministério da Saúde deveria saber disso.

"Isso era fácil de ser previsto baseado nas características da nova medicação e na demanda dos pacientes por novas opções após todos esses anos descaso do governo brasileiro com a saúde dessas pessoas."

Na notificação enviada o ministério, a ABE solicita que o levetiracetam 750 mg esteja nas farmácias de alto custo até o dia 15 de janeiro. Também pede que, enquanto houver falta do remédio, as secretarias estaduais possam fazer a troca pela versão de 250 mg sem a necessidade de o paciente apresentar nova documentação.

Em nota enviada à Folha na sexta (31), o Ministério da Saúde informou que o processo para aquisição do medicamento levetiracetam está em andamento. E que a distribuição do medicamento aos estados está prevista para o primeiro trimestre de 2022.

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