Descrição de chapéu The New York Times

Chance de médicos descreverem pacientes negros como não cooperativos é maior, diz estudo

Pesquisa analisou registros nos EUA; profissionais deveriam tentar entender motivo de não adesão a tratamento, diz especialista

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Roni Caryn Rabin
The New York Times

As fichas médicas contêm uma grande variedade de informações, do diagnóstico e tratamentos de um paciente à sua situação conjugal, consumo de bebidas alcoólicas e hábitos quanto a exercício.

Elas também registram se um paciente segue a orientação dos médicos. Um fornecedor de serviços de saúde pode acrescentar uma anotação informando que o paciente "não está cooperando" ou "não está aderindo", o que sinaliza que este não vem colaborando e exibe comportamentos problemáticos.

Dois grandes estudos novos constataram que esses termos, embora não sejam de uso comum, têm probabilidade muito superior de aparecer nas fichas médicas de pacientes negros do que nas de pacientes de outras raças.

Sobre uma mesa há uma prancheta e um estetoscópio
rogerphoto/ stock.adobe.com

"Na medicina, tendemos a rotular as pessoas de maneira derrogatória quando não as ‘vemos’ realmente", disse Dean Schillinger, médico que dirige o Centro para Populações Vulneráveis do San Francisco General Hospital and Trauma Center, e não participou da pesquisa. "O processo de rotular oferece um atalho conveniente que leva alguns médicos a culpar os pacientes por suas doenças’".

O primeiro estudo, publicado pela revista científica Health Affairs, constatou que a probabilidade de que pacientes negros tivessem pelo menos uma descrição negativa presente em suas fichas eletrônicas de saúde era 250% mais alta do que no caso de pacientes de outras raças.

O estudo se baseou em uma análise de mais de 40 mil anotações feitas sobre 18.459 pacientes adultos, em um grande centro médico urbano em Chicago, entre janeiro de 2019 e outubro de 2020.

Cerca de 8% de todos os pacientes tinham um ou mais termos derrogatórios presentes em suas fichas, o estudo descobriu. Os termos negativos de descrição mais usados nas fichas eram "recusou", "não aceitou", "não cumpriu" e "agitado".

"Não é tanto a questão de que um médico nunca deveria usar esses termos, mas sim a de por que estamos aplicando essas palavras com frequência tão maior aos pacientes negros", disse Michael Sun, principal autor do estudo e estudante do terceiro ano de medicina na Escola Pritzker de Medicina, da Universidade de Chicago.

"Será que acreditamos realmente que os pacientes negros não cumprem as instruções médicas com frequência tão maior que os pacientes brancos?"

Em lugar de presumir que falta motivação ao paciente ou que ele não está engajado, a equipe médica deveria perguntar se o paciente está enfrentando dificuldades financeiras, dificuldades de transporte ou outros obstáculos para aderir ao tratamento, por exemplo analfabetismo ou problemas para entender a língua inglesa.

Os pesquisadores constataram que os registros de pacientes tratados em clínicas têm probabilidade muito menor de conter termos negativos do que os registros de hospitais e prontos-socorros, talvez porque os prestadores de serviços clínicos tenham um relacionamento mais frequente com seus pacientes e conheçam melhor as circunstâncias deles.

Independentemente de raça, os pacientes não casados e aqueles que dependem de planos de saúde do governo como o Medicare e o Medicaid apresentam probabilidade muito maior de receber descrições negativas do que os casados ou os dotados de planos de saúde particulares.

Os pacientes que apresentam condições gerais de saúde ruins, com diversos problemas de saúde crônicos subjacentes, também apresentam probabilidade duas vezes mais alta de receber qualificações negativas em suas fichas médicas, apontou a pesquisa.

O segundo estudo foi publicado na JAMA Network Open e analisa as fichas médicas eletrônicas de quase 30 mil pacientes em um grande centro urbano acadêmico, entre janeiro e dezembro de 2018.

O estudo estava em busca do que os pesquisadores designaram como "linguagem reprovadora" e comparou os termos negativos usados para descrever pacientes de diferentes origens raciais e étnicas, bem como os portadores de três doenças crônicas: diabetes, abuso de substancias e desordens que acarretam dores severas.

No geral, 2,5% das anotações continham termos como "não aderiu", "não cumpriu", "falhou" ou "não fez", "recusou" ou "recusa", e, em certas ocasiões, "combativo" ou "questionador". Mas, enquanto 2,6% das anotações sobre pacientes brancos continham termos como esses, eles estavam presentes em 3,15% das anotações sobre pacientes negros.

Observando cerca de 8,7 mil anotações sobre pacientes diabéticos, 6,1 mil anotações sobre pacientes com distúrbio de abuso de substâncias e 5,1 mil anotações sobre pacientes com dores crônicas, os pesquisadores determinaram que os pacientes com diabetes, na maioria portadores de diabetes tipo 2, muitas vezes associada ao excesso de peso e definida como uma doença de "estilo de vida", apresentavam a maior probabilidade de ser descritos de maneira negativa.

Quase 7% dos pacientes de diabetes foram descritos como não tendo cumprido as prescrições, ou como portadores de formas "descontroladas" da doença, ou como "falhos" no tratamento.

Uma anotação pode descrever que um paciente "recusou a dieta para o diabetes", por exemplo, ou "não cumpriu o regime de insulina". Quanto mais severa a doença, maior a probabilidade de que o paciente tenha anotações com descrições negativas.

Em contraste, apenas 3,4% dos pacientes com distúrbios de abuso de substâncias foram descritos em termos negativos, e menos de 1% dos pacientes com dores crônicas tinham anotações com descrições negativas.

A ficha médica é a primeira coisa que um prestador hospitalar de serviços de saúde vê, antes mesmo de ver o paciente, disse a médica Gracie Himmelstein, principal autora do estudo, e ela cria uma primeira impressão forte

"Antes de eu encontrar o paciente pela primeira vez na sala de emergência, a primeira coisa que faço é pedir sua ficha, ler as notas de admissão anteriores e tentar avaliar seu histórico médico", disse Himmelstein, médica residente na Universidade da Califórnia em Los Angeles, que conduziu a pesquisa como parte de sua tese de doutorado na Universidade de Princeton.

"O que procuro é determinar quais são os problemas médicos, mas ao fazê-lo também estou lendo uma narrativa da interação entre o paciente e médicos anteriores".

Em lugar de depender de termos vagos e possivelmente preconceituosos como "não cumpriu", os médicos deveriam tentar entender por que um paciente não está cooperando e apontar razões específicas na ficha médica, disse Himmelstein.

"Se um paciente não está, entre aspas, cumprindo o regime de tratamento, o que está acontecendo?", ela disse. "As pessoas têm dificuldades para administrar a insulina. Ela pode ser proibitivamente cara. Pode haver dificuldades de alfabetização médica. Precisamos identificar exatamente onde está o problema".

Os rótulos têm consequências, alertou Schillinger. Embora algumas das anotações forneçam informações essenciais, os termos usados podem obscurecer o julgamento e as decisões do médico —e de futuros médicos—, reduzir sua compaixão e empatia. E isso pode fazer com que os pacientes percam a confiança nos prestadores de serviço de saúde.

"Os pacientes cujos médicos os julgam, culpam ou criticam têm probabilidade muito menor de confiar em seus médicos e no sistema de saúde como um todo", disse Schillinger.

"Ter provedores de saúde confiáveis —que conquistem a confiança de seus pacientes ao não julgá-los de forma injusta— é crítico para garantir a melhor saúde possível e eliminar as disparidades na saúde".

Tradução de Paulo Migliacci

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