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Secretário da Saúde mostrou descaso ao rejeitar diretriz anticloroquina, diz recurso

Coordenador de grupo de especialistas que elaborou orientações ao ministério assina documento que contesta atitude de Hélio Angotti

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Brasília

Um recurso apresentado ao Ministério da Saúde afirma que houve descaso do secretário de Ciência e Tecnologia da pasta, Hélio Angotti, ao rejeitar diretriz de tratamento da Covid-19 elaborada por especialistas. O texto recusado era contrário ao uso de medicamentos do kit Covid, como a hidroxicloroquina.

Assinado por Carlos Carvalho, médico e professor da USP que coordenou o grupo de especialistas que elaborou a diretriz, o recurso pede para a pasta rever a decisão e aceitar as orientações sobre o combate à pandemia.

Carvalho afirma que o secretário mostrou "descaso com o cenário pressuroso da pandemia" ao levar seis meses para se manifestar sobre parte da diretriz, que aborda o tratamento hospitalar da Covid e havia sido aprovada por unanimidade pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS).

Bolsonaro segura caixa no alto da cabeça com braços esticados, ao fundo, atrás de grade de proteção, população acompanha a cena
Jair Bolsonaro mostra caixa de cloroquina a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, em 19 de julho de 2020 - Reprodução Facebook /Jair Bolsonaro

O recurso, apresentado na sexta-feira (5), será avaliado por Angotti e depois, se houver nova contestação, pelo ministro Marcelo Queiroga.

O documento assinado pelo professor da USP tem 111 páginas, sendo 22 de referências bibliográficas, e rebate cada argumento utilizado pelo secretário para vetar as diretrizes.

Procurado, o Ministério da Saúde respondeu que "irá avaliar todos os recursos apresentados e irá se manifestar dentro do prazo previsto". Mais cedo, nesta segunda-feira (7), Queiroga já havia comentado a questão.

"Na hora em que o recurso chegar para mim, o secretário tem prazo de cinco dias [para responder]. Se ele acatar, assunto encerrado. Se não, sobe ao ministro e o ministro vai julgar", disse Queiroga a jornalista.

Ao assumir o Ministério da Saúde, em março de 2020, Queiroga anunciou que promoveria o debate na Conitec para encerrar a discussão sobre o uso do kit Covid. Ele indicou Carvalho, contrário aos fármacos ineficazes, para organizar grupo que iria elaborar os pareceres.

Queiroga, porém, modulou o discurso e tem investido na pauta bolsonarista para se agarrar ao cargo.

Além desse texto, Angotti rejeitou, no fim de janeiro, outras duas orientações de tratamento hospitalar e outra sobre os cuidados ambulatoriais de pacientes. A última, aprovada na Conitec por 7 a 6, também rejeitava o uso da hidroxicloroquina, entre outros fármacos sem eficácia para a Covid.

No recurso, Carvalho também afirma que Angotti usou argumento calunioso e utópico para apontar "conflito de interesse de ordem ideológica" de entidades que atuaram na elaboração do parecer.

"O Secretário, apesar de sua formação em medicina, promove confusão ao misturar conceitos equivocados de profilaxia e tratamento", afirmou Carvalho.

Angotti é um médico e seguidor o escritor Olavo de Carvalho, tido como guru do Bolsonarismo, que morreu em janeiro.

O documento disse ainda que os temas "autonomia médica" e "uso off-label [aplicação de medicamentos fora da indicação da bula]" foram citados por Angotti de forma requentada e a partir de discurso do CFM (Conselho Federal de Medicina). O conselho se alinhou à pauta bolsonarista na pandemia e deu aval para médicos usarem medicamentos sem eficácia.

Carvalho afirma que o próprio CFM reconhece em processos que "autonomia médica, por ser subordinada a protocolos científicos, tem limites condicionados a escolas, a métodos e experimentações prévias e nunca pode ser entendida como liberdade profissional irrestrita".

"Portanto, o princípio da autonomia médica não se justifica como prerrogativa de excepcionalidade na situação de prescrição de medicações já extensamente demonstradas como ineficazes, como quer fazer crer o secretário", afirma o professor, no recurso.

O mesmo documento afirma que Angotti infringiu o Código de Ética do Servidor Público, pois retardou por mais de seis meses a publicação no Diário Oficial de pareceres que haviam sido aprovados na Conitec.

"E mesmo tendo percebido que surgiram novos artigos científicos que poderiam gerar atualizações importantes, não pediu qualquer revisão do documento aprovado", afirmou Carvalho.

O recurso aponta que a demora na publicação impediu atualizações do documento, e que Angotti usou o atraso de algumas informações como argumento para vetar o texto.

O recurso afirma que faltou ao secretário "o mínimo de transparência pessoal, haja visto a total falta de independência científica e técnica" ao ter acatado argumento pró-hidroxicloroquina e contrário às vacinas em nota usada para justificar a rejeição das diretrizes.

Carvalho se referia a texto assinado por Angotti que defendia a droga sem eficácia e dizia que imunizantes não funciona contra a Covid. Este argumento foi retirado da nota do secretário, após repercussão negativa, mas a decisão de vetar as orientações da Conitec foi mantida.

A comparação entre a hidroxicloroquina e a vacina havia sido inserida na nota do secretário a partir de um documento feito na pasta da Saúde comandada por Mayra Pinheiro, conhecida como "capitã cloroquina". O recurso afirma que ela é "conhecida defensora de medicações sem comprovação de eficácia contra a Covid-19".

O professor da USP também citou no recurso que Angotti trouxe ao debate da Conitec pesquisadores defensores de medicamentos sem eficácia, além de médico alvo de pedido de indiciamento pela CPI da Covid do Senado.

Ele cita que o biólogo Regis Bruni Andriolo chegou a participar de reuniões e audiência pública sobre as diretrizes. Como mostrou a Folha, trata-se de pesquisador que Angotti quer colocar no comando da Conitec.

O Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19 da Associação Médica Brasileira divulgou uma nota em apoio ao recurso de Carvalho.

Segundo o comitê, os pareceres técnicos rejeitados resultaram de árduo trabalho elaborado ao longo de meses por um grupo constituído a convite do próprio Ministério da Saúde, composto por notáveis cientistas, médicos, professores universitários e pesquisadores de diversas instituições e de sociedades médicas do Brasil.

"O CEM COVID_AMB reitera apoio irrestrito ao recurso impetrado pelo Prof. Carlos Carvalho e ao parecer "Diretrizes Brasileiras para o Tratamento Medicamentoso Ambulatorial e Hospitalar do Paciente com Covid-19" por avaliar que o veto do secretário da SCTIE/MS aparenta ser gesto arbitrário e unilateral que constitui grave desserviço ao enfrentamento assertivo da Pandemia Covid no Brasil", disse o comitê em nota.

O Ministério da Saúde barrou a publicação da diretriz para tratamento de pacientes com Covid-19 elaborada por grupo de especialistas que contraindicava o uso de kit Covid no SUS em 21 de janeiro.

A Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou a convocação de Angotti e Queiroga para explicarem a rejeição das diretrizes.

O texto havia sido aprovado pela Conitec, apesar de tentativas da ala pró-cloroquina do governo de boicotar a discussão.

Os textos que contraindicavam o kit Covid foram aprovados em junho e dezembro de 2021 pela Conitec, mas a publicação das diretrizes estava sendo postergados por Angotti.

Enquanto Angotti terá cinco dias para apresentar nova resposta sobre os pareceres após o recurso, em última instância, e sem prazo de resposta, o ministro Queiroga decide sobre a publicação ou não das diretrizes.

Além do recurso apresentado, o MPF (Ministério Público Federal) recomendou a revogação da nota de Angotti. Segundo o órgão, a normativa contraria temas já pacificados pela comunidade científica.

A Procuradoria da República no Distrito Federal pediu ainda que o secretário publique as diretrizes aprovadas. O governo tem dez dias para se posicionar sobre o assunto.

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