Baixo índice de mortes por Covid na África ainda é mistério para cientistas

Novas pesquisas revelam que não há mais dúvida de que a pandemia se alastrou amplamente no continente

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Stephanie Nolen
Kamakwie | The New York Times

Desde o início da pandemia, o centro de resposta à Covid do distrito registrou apenas 11 casos da doença e nenhum óbito. O hospital regional está lotado, mas de pacientes com malária. A porta da enfermaria isolada para doentes de Covid está trancada e coberta de mato. As pessoas lotam espaços coletivos para eventos como casamentos, concertos e partidas de futebol, e não há máscaras à vista.

Serra Leoa, país de 8 milhões de habitantes na costa da África ocidental, parece uma terra inexplicavelmente poupada de uma praga. O que aconteceu ou deixou de acontecer aqui e em boa parte da África subsaariana é um grande mistério da pandemia.

O baixo índice de infecções, hospitalizações e mortes pelo coronavírus na África ocidental e central é o foco de um debate que divide cientistas do continente e do resto do mundo.

Será que os doentes e mortos simplesmente não foram contabilizados? Se o coronavírus de fato causou menos devastação aqui, qual é a razão? Se foi igualmente virulento, como se explica que não nos demos conta disso?

Um casamento na vila de Kamakuyor, em Serra Leoa; durante a pandemia, o governo local divulgou apenas 11 casos de Covid-19 e nenhuma morte
Um casamento na vila de Kamakuyor, em Serra Leoa; durante a pandemia, o governo local divulgou apenas 11 casos de Covid-19 e nenhuma morte - Finbarr O'Reilly/The New York Times

Em entrevista dada na capital de Serra Leoa, Freetown, o ministro da Saúde leonês Austin Demby disse que as respostas "são relevantes não apenas para nós, mas também para o bem público maior".

A asserção de que a Covid não é um perigo tão grande assim na África provocou uma discussão sobre se a campanha da União Africana para vacinar 70% dos africanos contra o vírus este ano é ou não a melhor utilização a ser feita das verbas para a saúde, dado que a devastação provocada por outros patógenos, como a malária, parece ser muito maior.

Nos primeiros meses da pandemia temeu-se que a Covid pudesse eviscerar a África, correndo solta por países com sistemas de saúde tão fracos quanto o de Serra Leoa, que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), tem apenas três médicos para cada 100 mil habitantes. A alta prevalência de malária, HIV, tuberculose e desnutrição foi vista como um gatilho para o desastre.

Isso não aconteceu. A primeira versão do coronavírus que percorreu o mundo teve impacto comparativamente mínimo nesta região. A variante beta causou estrago na África do Sul, como também fizeram a delta e a ômicron, mas boa parte do resto do continente não registrou óbitos em número comparável.

Agora, no terceiro ano da pandemia, novas pesquisas revelam que não há mais dúvida quanto a se a Covid se alastrou amplamente na África: isso aconteceu, sim.

Estudos que testaram amostras de sangue para checar a presença de anticorpos do Sars-CoV-2, o nome oficial do vírus responsável pela Covid, apontam que cerca de dois terços da população na maioria dos países subsaarianos possuem esses anticorpos. Como apenas 14% da população recebeu qualquer tipo de vacina anti-Covid, os anticorpos são sobretudo resultantes de infecções.

Uma nova análise liderada pela OMS mas ainda não revista por pares sintetizou pesquisas feitas em todo o continente e constatou que até o terceiro trimestre de 2021, 65% dos africanos haviam sido infectados —uma incidência mais alta que muitas outras partes do mundo. Apenas 4% dos africanos haviam sido vacinados quando esses dados foram colhidos.

Logo, o vírus está presente na África. Será que está matando menos pessoas?

Algumas especulações enfocaram a relativa juventude dos africanos. A idade média dos africanos é 19 anos, enquanto na Europa é 43 e nos Estados Unidos, 38. Quase dois terços dos habitantes da África subsaariana têm menos de 25 anos, e apenas 3% têm 65 ou mais.

Isso significa que comparativamente muito menos pessoas já viveram o suficiente para desenvolver os problemas de saúde (doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias crônicas e câncer) que poderiam elevar fortemente o risco de adoecimento grave e morte por Covid. Os jovens infectados pelo coronavírus frequentemente são assintomáticos, fato que pode ser responsável pelo baixo número de casos notificados.

Várias outras hipóteses foram aventadas. O clima quente e o fato de as pessoas passarem boa parte da vida ao ar livre podem dificultar o alastramento da doença. Ou isso pode ocorrer devido à baixa densidade demográfica em muitas áreas, ou ainda à infraestrutura limitada de transportes públicos.

Talvez a exposição a outros patógenos, incluindo outros coronavírus e infecções letais como a febre de Lassa ou o ebola, tenha de alguma maneira proporcionado proteção às pessoas.

Mas desde que a Covid se alastrou rapidamente pelo sul e sudeste da Ásia no ano passado, ficou mais difícil aceitar essas teorias. Afinal, a população da Índia também é jovem (com média de idade de 28 anos), e o clima no país também é relativamente quente.

Mas pesquisadores constataram que a variante delta fez milhões de mortos na Índia, muito mais que os 400 mil óbitos oficialmente notificados. E os índices de infecção por malária e outros tipos de coronavírus são altos em países, incluindo a Índia, que também vêm tendo altas taxas de mortalidade por Covid.

Homem passa por mural em Soweto's Kliptown, na África do Sul, onde o governo impôs lockdown devido aos casos de Covid-19
Homem passa por mural em Soweto's Kliptown, na África do Sul, onde o governo impôs lockdown devido aos casos de Covid-19 - Siphiwe Sibeko - 1º.fev.22/Reuters

Será que as mortes por Covid na África simplesmente não estão sendo contabilizadas?

A maioria dos instrumentos globais de rastreamento de casos de Covid não registra nenhum caso da doença em Serra Leoa, isso porque os testes do vírus são praticamente inexistentes no país. Sem testes, não há casos a notificar.

Um projeto de pesquisa na Universidade Njala, em Serra Leoa, concluiu que 78% das pessoas possuem anticorpos para este coronavírus. Mas Serra Leoa teve apenas 125 mortes por Covid notificadas desde o início da pandemia.

A maioria das pessoas morre em casa, não num hospital, ou porque não tem acesso a um hospital ou clínica ou porque suas famílias as levam para morrer em casa. Muitas mortes não chegam a ser registradas junto às autoridades civis.

Esse padrão é comum em toda a África subsaariana. Pesquisa recente da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África descobriu que os sistemas oficiais de registro captam apenas um em cada três óbitos.

O único país subsaariano onde praticamente todos os óbitos são registrados é a África do Sul. E os dados deixam claro que a Covid fez muitos mortos nesse país, muito mais que os mortos notificados.

Os dados sobre mortalidade em excesso revelam que entre maio de 2020 e setembro de 2021, 250 mil pessoas mais morreram de causas naturais do que estava previsto para esse período, com base no padrão dos anos anteriores. As fases de aumento da taxa de óbitos corresponde às de aumento dos casos de Covid, sugerindo que o vírus tenha sido o culpado.

Dr. Lawrence Mwananyanda, epidemiologista na Universidade de Boston e assessor especial do presidente de Zâmbia, disse não ter dúvida de que o impacto da Covid em Zâmbia foi tão forte quanto na África do Sul, mas que as mortes zambianas não foram captadas por um sistema de registro muito mais fraco. País com mais de 18 milhões de habitantes, Zâmbia tem apenas 4.000 casos notificados de morte por Covid.

"Se isso está acontecendo na África do Sul, por que seria diferente aqui?", disse o epidemiologista. Na realidade, acrescentou, a África do Sul tem um sistema de saúde muito mais forte, o que deve apontar para um índice de óbitos mais baixo, e não mais alto.

Uma equipe de pesquisadores que Mwananyanda liderou constatou que durante a onda de delta em Zâmbia, 87% dos cadáveres nos necrotérios dos hospitais estavam infectados por Covid. "Os necrotérios estavam cheios. Nada mais era diferente. A única diferença é que nós, zambianos, temos dados muito incompletos."

O semanário The Economist, que vem monitorando as mortes excedentes ao longo da pandemia, aponta para índices semelhantes de mortes em toda a África. Sondre Solstad, responsável pelo modelo da África, disse que houve entre 1 milhão e 2,9 milhões de mortes excedentes no continente durante a pandemia.

"Seria lindo se os africanos fossem poupados do coronavírus, mas eles não são", ele disse.

Mas muitos cientistas que rastreiam a pandemia em campo discordam. Dizem que não é possível que centenas de milhares ou mesmo milhões de mortes por Covid tenham passado despercebidas.

"Não temos visto sepultamentos em massa na África. Se isso tivesse ocorrido, teríamos notado", disse o Dr. Thierno Baldé, diretor do programa da OMS de resposta emergencial à Covid na África.

O Dr. Salim Abdool Karim, que faz parte da força-tarefa para a Covid dos CDC (Centros para o Controle e Prevenção de Doenças) africanos e participou da equipe de pesquisadores que contabilizou as mortes excedentes na África do Sul, acredita que o total de mortos em todo o continente provavelmente seja condizente com o de seu país.

Para ele, simplesmente não existe razão por que gambianos ou etíopes sejam menos vulneráveis à Covid que os sul-africanos.

Mas ele também destacou que está claro que não há grande número de pessoas comparecendo a hospitais sofrendo de dificuldade respiratória aguda.

Para ele, a juventude da população é evidentemente um fator crucial, e, ao mesmo tempo, algumas pessoas mais idosas que morrem por AVCs ou outras causas induzidas pela Covid não estão sendo identificadas como tendo morrido de Covid. Muitas sequer chegam aos hospitais, e sua morte não é registrada.

Mas outras não estão adoecendo em proporções semelhantes às vistas em outros países e regiões, e esse é um mistério que precisa ser apurado.

"É tremendamente importante para coisas tão básicas quanto desenvolvimento de vacinas e tratamentos", explicou o Dr. Prabhat Jha, diretor do Centro de Pesquisas em Saúde Global, de Toronto, que encabeça um estudo para analisar causas de morte em Serra Leoa.

Pesquisadores que trabalham com Jha vêm usando métodos inovadores (como, por exemplo, procurar qualquer aumento de receita que estações de rádio de cidades em Serra Leoa possam ter tido nos últimos dois anos por publicar obituários) para tentar verificar se as mortes podem ter aumentado sem que isso fosse notado, mas ele disse está claro que não houve nenhuma grande maré de pessoas extremamente doentes.

Algumas organizações que trabalham na campanha de vacinação contra Covid dizem que o esforço deveria ser revisto em função dos índices mais baixos de adoecimento e mortes. John Johnson, assessor de vacinação do grupo Médicos Sem Fronteiras, disse que vacinar 70% dos africanos fazia sentido um ano atrás, quando parecia que as vacinas poderiam garantir imunidade de longo prazo e possibilitar o fim da transmissão de Covid.

Mas, agora que se sabe que a proteção contra o vírus se enfraquece com o tempo, a imunidade coletiva já não parece um objetivo viável. Assim, em lugares como Serra Leoa, uma estratégia de imunização que enfoque apenas os setores mais vulneráveis da população faria uso melhor dos recursos disponíveis.

"Será que vacinar a população contra a Covid é o mais importante em países onde há problemas muito maiores com a malária, a pólio, sarampo, cólera, meningite, desnutrição?", ele indagou.

"É com isso que queremos gastar nossos recursos nesses países? Porque no ponto em que estamos, a vacinação não é para ajudar essas pessoas: é para tentar prevenir o surgimento de novas variantes."

E, segundo ele, as novas variantes de Covid representam um perigo maior em países com populações mais idosas e com altos níveis de comorbidades como a obesidade.

Outros especialistas ressalvam que o vírus ainda é um adversário imprevisível e que restringir os esforços para vacinar a população da África subsaariana pode ainda resultar em tragédia.

"Não podemos ficar complacentes e supor que a África não poderá seguir o caminho da Índia", disse Jha.

Ainda é possível que emerja uma nova variante tão infecciosa quanto a ômicron mas mais letal que a delta, ele alertou, deixando os africanos vulneráveis, a não ser que os índices de vacinação aumentam significativamente.

"Devemos realmente evitar a ideia arrogante de que a África está em segurança", ele disse.

Tradução de Clara Allain

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