Base do desenvolvimento de crianças está nos primeiros mil dias, diz médico

Projeto da USP acompanhará 500 crianças por três anos para determinar os fatores positivos e os de risco

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São Paulo

O que determina o desenvolvimento saudável de um ser humano? Uma parte importante dessa resposta está nos primeiros mil dias de vida, ou três anos.

Nesse período crucial, forma-se a base para um desenvolvimento cognitivo e emocional pleno a partir das relações com pais e cuidadores e dos estímulos que a criança recebe. Também entram na conta a genética, a alimentação, a microbiota e o estresse do ambiente.

Para identificar e prever quais exatamente são os fatores que favorecem um bom desenvolvimento e quais são fatores de risco, 15 diferentes grupos de pesquisa da USP (Universidade de São Paulo) se uniram e criaram o Projeto Germina, que vai acompanhar 500 crianças a partir dos três meses de vida durante três anos.

O psiquiatra Guilherme Polanczyk posa para foto entre duas estantes de livros
O psiquiatra Guilherme Polanczyk lidera estudo que vai acompanhar 500 bebês, a partir de três meses de vida, para investigar quais fatores auxiliam no bom desenvolvimento - Danilo Verpa/Folhapress

"Nossos achados poderão até auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas. Se conseguirmos prever quais crianças vão ter dificuldades, poderemos oferecer programas de promoção do bom desenvolvimento", diz Guilherme Polanczyk, professor associado de psiquiatria da infância e da adolescência da Faculdade de Medicina da USP e líder do projeto.

O estudo ainda está recrutando voluntários. Os participantes poderão conhecer em detalhes o desenvolvimento de seus bebês, receberão orientações caso seja detectado qualquer problema e também os resultados da pesquisa, incluindo o sequenciamento do genoma das crianças. Os pais interessados podem se inscrever pelo site do projeto. ​

O que já se sabe sobre a importância dos três primeiros anos de vida para o desenvolvimento humano? Sabemos que a relação que se estabelece principalmente com a mãe, mas também com o pai e outros cuidadores, no início da vida é fundadora de como a criança interage com o mundo, ou seja, forma a base de como a criança recebe estímulos e como se sente segura para agir de forma ativa no mundo.

Antes a literatura científica tinha um enfoque mais psicológico. Hoje, com a neurociência, a gente tem cada vez mais métodos de obter imagens do cérebro e outras medidas laboratoriais, e com isso temos entendido cada vez mais que muitas habilidades que mais tarde vão ser importantes já começam a se desenvolver no primeiro e no segundo anos de vida. Controle da atenção, linguagem, controle motor, regulação emocional, todas essas questões já começam a aparecer no início da vida.

Nas últimas duas décadas, ficou muito claro que há problemas de saúde mental dos adultos que começam na infância ou na adolescência. E estamos vendo que muitas questões podem ainda começar mais cedo, às vezes até na gestação, como obesidade e risco cardiovascular. Estamos vendo também como o cérebro se desenvolve cada vez mais cedo.

E o que mais o estudo quer descobrir? Quais são as lacunas que precisam ser preenchidas sobre essa fase da vida? Uma lacuna ambiciosa é tentar predizer quem vai ter dificuldades de desenvolvimento no futuro. Os estudos mostram associações —por exemplo, a criança que chora mais é mais agitada ou tem mais dificuldade na linguagem, mas isso não é suficiente para eu dizer qual criança vai ter dificuldade com linguagem.

A ideia é chegar mais perto disso. Isso seria superimportante porque abre caminho para estratégias de prevenção. Se eu conseguir identificar antes, poderei oferecer um programa com atividades para a promoção do bom desenvolvimento.

Esse estudo tem vários aspectos inovadores. Um dos mais importantes é como estamos olhando de forma compreensiva e ampla para a infância, e isso só pôde acontecer porque temos pesquisadores de diferentes áreas —genética, nutrição, desenvolvimento do cérebro, pediatria, psiquiatria.

Com isso, vamos poder entender como esses fatores interagem entre si e conseguem predizer quem vai se desenvolver bem e quem vai ter dificuldades. Geralmente, os estudos avaliam um ou dois fatores isolados.

Quando dizemos que uma criança que sofreu violência se desenvolveu bem apesar disso, estamos olhando só para a violência, sem considerar a genética, a nutrição. A ideia é poder olhar para todos os fatores e ver como a combinação deles diz quem vai se desenvolver bem.

Vocês pretendem avaliar também como os castigos físicos podem impactar o desenvolvimento das crianças? Hoje, mesmo com a lei da palmada e mais discussão a respeito, ainda é um assunto controverso no Brasil. Hoje já há boas evidências de que o uso de violência física está relacionado ao desenvolvimento de ansiedade e depressão ao longo da vida, mas estamos também fazendo uma avaliação ampla do ambiente em que a criança vive por meio de questionários.

Perguntamos sobre práticas parentais, a estimulação que a criança recebe, os cuidados maternos e fazemos uma avaliação da interação entre mãe e bebê. Existem instrumentos padronizados, com filmagens de dez minutos da mãe interagindo com a criança, para entender o comportamento materno. O ambiente, incluindo práticas coercitivas e punitivas, será, sim, avaliado.

Como o que ocorre nos primeiros mil dias de vida fica marcado a ponto de impactar o que vai ocorrer no futuro, apesar de não nos lembrarmos dessa fase? Isso fica marcado no cérebro, e temos evidências que mostram como a estrutura do cérebro, os padrões hormonais e os marcadores epigenéticos se modificam a partir dessas experiências nos primeiros anos de vida, que vão moldar habilidades que não necessariamente são tão conscientes assim, como a de regular as emoções ou do desenvolvimento da linguagem.

A gente sabe que o número de palavras a que as crianças estão expostas no primeiro ano influencia largamente o nível de linguagem dela, e a gente sabe que crianças com dois anos que falam frases vão ter mais chance de um desenvolvimento cognitivo saudável. Então são habilidades que não necessariamente são conscientes ou acessíveis à nossa memória; são básicas, da fundação do cérebro.

Tem todo um circuito cerebral que se relaciona com medo. As crianças que são expostas a situações de estresse, de negligência, em que não se sentem cuidadas, vão ter alterações nesse circuito e eventualmente vão desenvolver ansiedade.

O maior estudo que mostra a força dessas influências é o estudo dos órfãos da Romênia, que mostra de forma brutal como a ausência do toque e do carinho faz com que as crianças não desenvolvam habilidades cognitivas e emocionais.

Cerca de 200 mil crianças ficaram basicamente depositadas em orfanatos, sem ter qualquer contato de pele com outras pessoas e sem receber afeto. Elas ficavam em berços e as mamadeiras eram colocadas entre as grades.

O que se viu foram crianças com desenvolvimento gravíssimo, quase autistas, sem falar, sem controlar o esfíncter. É um dos experimentos naturais mais brutais que mostram a força do ambiente na infância.

Guilherme Polanczyk diz que os achados no estudo poderão até auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas no país
Guilherme Polanczyk diz que os achados no estudo poderão até auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas no país - Danilo Verpa/Folhapress

​​Quando a criança não é exposta a bons fatores no início da vida, mas, por algum motivo esse cenário muda, quais as chances de recuperar ou salvar um dano que já foi feito? Depende da intensidade do dano e do momento em que ela é retirada do ambiente hostil. No caso da Romênia, alguns investigadores mostraram que crianças adotadas antes dos dois anos tinham um padrão de funcionamento do cérebro similar ao de crianças que não tinham sido institucionalizadas. Ainda assim, a regulação emocional pode ser trabalhada ao longo do tempo, e a linguagem pode ser estimulada ainda cedo, nos primeiros anos de vida.

O que os pais e cuidadores podem e devem fazer, tanto nesses três primeiros anos como depois, para garantir um bom desenvolvimento? Uma das coisas mais importantes para pais e cuidadores é estabelecer uma conexão com a criança e desenvolver um tipo de cuidado sensível e responsivo.

Ou seja, conhecendo a criança você consegue perceber o que ela está te comunicando, se está desconfortável em determinado ambiente, se está gostando de determinada pessoa, e responder a essas necessidades e demandas. Essa conexão é uma das bases para o desenvolvimento emocional e cognitivo saudável. Ao mesmo tempo, é importante dar limites e regras e pensar no valor que é importante para você do ponto de vista educacional.


Raio-X

Guilherme Polanczyk

É psiquiatra da infância e adolescência e professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Formou-se em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e fez pós-doutorado no Institute of Psychiatry, Psychology & Neuroscience no King's College London (Reino Unido) e na Duke University (EUA).

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