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Brasil, terra do biquíni fio dental, abraça sua versão mais pesada

Movimento crescente vem fazendo do país o líder mundial em matéria de consagrar proteções para as pessoas com excesso de peso

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Jack Nicas
Recife | The New York Times

Nesta metrópole litorânea do Nordeste brasileiro, as escolas vêm comprando carteiras maiores, os hospitais andam adquirindo leitos e aparelhos de ressonância magnética maiores, e o teatro histórico do centro da cidade agora oferece assentos mais largos.

Recife é uma das cidades mais gordas do Brasil. E está rapidamente se tornando um dos lugares mais acolhedores do mundo para pessoas com obesidade.

Isso é porque Recife faz parte de um movimento crescente no Brasil que, segundo especialistas, em pouco tempo vem fazendo do país o líder mundial em matéria de consagrar proteções para as pessoas com excesso de peso.

Imagem em primeiro plano mostra mulher obesa, de perfil em pé em uma sacada
Mariana Donato, 36, faz uma pausa nas aulas de dança; ela e seu grupo de dança se reuniram para ensaiar antes do concurso Miss Plus Size Fashion em Recife - Dado Galdieri/The New York Times

Nos últimos 20 anos a taxa de obesidade brasileira dobrou, chegando hoje a mais de um em cada quatro adultos. Em resposta, ativistas vêm lutando para tornar a vida menos difícil para os brasileiros que pesam muito. E o sucesso de seus esforços se destaca globalmente por estar transformando não apenas as atitudes, mas as leis.

Hoje, medidas em vigor em todo o país garantem aos obesos assentos preferenciais nos metrôs, prioridade em locais como bancos e, alguns casos, proteção contra discriminação.

Alunos de máscara em uma sala de aula
Alunos terminam projeto sobre bullying após aula sobre preconceito com peso em escola pública do Recife - Dado Galdieri/The New York Times

Aqui em Recife, cidade de 1,6 milhão de habitantes, uma lei aprovada no ano passado requer que as escolas adquiram carteiras maiores e eduquem os professores sobre a discriminação baseada no peso, para que possam incluir o assunto em suas aulas. Outra lei criou um dia anual dos direitos das pessoas com excesso de peso.

"Há muito mais que podemos fazer ao nível nacional, e se Deus quiser um dia vamos poder partir para o internacional", comentou a ativista recifense Karla Rezende, que começou a fazer pressão pelas novas leis quando percebeu que os cintos de segurança normais dos aviões não lhe cabiam. "Tem gordos em toda parte, e todos sofrem."

Ela fez uma pausa e então esclareceu: as expectativas culturais existentes no Brasil podem dificultar especialmente a vida dos brasileiros com excesso de peso. "É a exigência do corpo perfeito", explicou. "Das curvas na medida."

Assim como muitos outros países, o Brasil começou recentemente a enfrentar o racismo, sexismo e homofobia. Mas, num país onde o corpo muitas vezes está no centro das atenções —pense em cirurgia plástica, fios dentais na praia e um Carnaval que tem mais plumas que panos—, também está surgindo uma discussão nacional sobre como o país trata os as pessoas com excesso de peso.

Gordofobia, termo que indica a discriminação com base no excesso de peso, é um termo que está na boca de todos no país. Está ao centro de discussões acaloradas num dos programas de TV de maior audiência no Brasil, o reality show Big Brother Brasil, e é o assunto principal discutido em contas do Instagram e TikTok que têm milhões de seguidores.

A maior pop star brasileira, Anitta, chama a atenção por incluir mulheres obesas em seus vídeos musicais e às vezes não fotoshopar sua celulite. E, após a morte da cantora sertaneja Marília Mendonça no ano passado num desastre aéreo, alguns jornalistas e comentaristas foram fortemente criticados por mencionar seu peso.

O Brasil está de algumas maneiras seguindo uma tendência vista nos Estados Unidos e Europa, onde modelos de medidas maiores vêm ganhando presença nas passarelas. Mas em termos de políticas públicas, o movimento no Brasil ultrapassou rapidamente muitos outros países, segundo especialistas. O debate no país partiu da mídia para as câmaras de vereadores, os Legislativos estaduais e o Congresso.

Grupo de pessoas com camiseta de apoio a Cleo Henry, concorrente de concurso de beleza
O público do concurso de beleza para homens e mulheres corpulentos do Recife apoiou suas candidatas favoritas; fãs de Cleo Henry, uma das concorrentes, criaram camisetas para apoiá-la - Dado Galdieri/The New York Times

Em 2015 foram adotadas emendas a uma lei federal promulgada 15 anos antes, de modo a estender as proteções dadas às pessoas com deficiência física às pessoas com sobrepeso, dando-lhes direito a assentos preferenciais nos meios de transporte públicos e prioridade em certos locais como bancos.

O metrô de São Paulo hoje tem assentos mais largos para obesos, e no Rio de Janeiro há alguns no Maracanã. Três estados brasileiros recentemente dedicaram o dia 10 de setembro à promoção dos direitos dos obesos. E ,em dezembro um deles, Rondônia, também aprovou uma lei que garante aos obesos "acesso a todos os lugares", "tratamento digno" e proteção contra a gordofobia.​

"Estamos vendo no Brasil esforços coletivos de formuladores de políticas públicas para fazer frente a este problema, de um jeito que não estamos vendo realmente em outros lugares", comentou Rebecca Puhl, professora da Universidade de Connecticut que acompanha esse tipo de leis. "Nos EUA e, francamente, em todo o resto do mundo, a paisagem das políticas públicas está vazia."

Segundo Puhl, desde 1967, quando Michigan aprovou uma lei que protegia as pessoas contra a discriminação por peso, houve poucas políticas públicas importantes ou relacionadas nos EUA. O Massachusetts está avaliando aprovar legislação semelhante, embora não tenha conseguido levar a proposta a cabo anteriormente. Uma lei semelhante foi aprovada em 2016 na capital da Islândia, Reykjavík. E em 2014 a Corte Europeia de Justiça decidiu que a obesidade grave pode legalmente deixar as pessoas incapacitadas, potencialmente protegendo-as contra a discriminação. Mas a obesidade por si só não faz jus à proteção.

A gordofobia começou a ser citada em decisões judiciais de tribunais brasileiros em 2014, e os casos vêm aumentando constantemente desde então, segundo uma revisão dos julgamentos disponíveis realizada pela organização ativista brasileira Gorda na Lei. Em outubro um juiz impôs multa de US$1.000 (cerca de R$ 5.100) a um humorista por fazer piadas sobre o peso de uma bailarina brasileira obesa. "O réu exalava gordofobia inequívoca", disse o juiz em sua decisão. A liberdade de expressão é permitida, ele acrescentou, "mas é dever do Estado proteger as minorias".

Mesmo assim, a fiscalização muitas vezes deixa a desejar no país. Rayane Souza, cofundadora da Gorda na Lei, disse que muitos meios de transporte público continuam inacessíveis, apesar da lei de 2015. Ela apontou para um incidente ocorrido recentemente em Guarapari, onde uma mulher obesa ficou presa na catraca de um ônibus. Bombeiros a libertaram enquanto os outros passageiros gargalhavam, segundo o portal de notícias G1. "Choro à noite só de lembrar o que as pessoas falaram", Rosângela Pereira contou ao G1 dias mais tarde.

Em 2020, quase 29% dos brasileiros acima dos 20 anos eram obesos, sendo que em 2000 eram cerca de 15% nessa situação. Segundo o Instituto de Medição e Avaliação de Saúde da Universidade de Washington, é um dos maiores aumentos verificados em qualquer país nesse período. Entre os dez países de maior população no mundo, apenas México, Estados Unidos e Rússia tinham índices de obesidade mais altos, variando entre 31% e 37%, segundo os dados.

Claudia Cozer Kalil, endocrinologista em um dos maiores hospitais do Brasil, em São Paulo, atribuiu a obesidade crescente em parte a aumentos salariais que levaram a dietas pobres à base de fast food e alimentos processados. Segundo ela, o aumento da obesidade vem sendo acompanhado por problemas de saúde relacionados, como diabetes, hipertensão e apneia do sono. Ela acha que o governo deveria fazer mais para combater o problema, incluindo a melhoria dos rótulos de produtos alimentícios. No Brasil, os rótulos nutricionais frequentemente não incluem o açúcar, por exemplo.

Mesmo assim, ela é a favor das leis. "A verdade é que a população está mais pesada", ela disse. "Precisamos nos adaptar a isso."

O debate brasileiro sobre a gordofobia gira em torno também da imagem pouco realista do corpo brasileiro na mídia nacional e internacional. Para ativistas, o impacto psicológico dessa imagem é ilustrado pelos esforços de brasileiras para inchar lábios, seios, bumbuns e músculos e para reduzir suas gorduras com lipossucção, tudo isso num índice muito mais alto que o da maioria dos outros países.

O Brasil foi líder mundial de cirurgias plásticas em 2019. Em 2020, no meio da pandemia, foram realizadas 6,1 plásticas em cada mil pessoas, contra 4,5 por cada mil pessoas nos Estados Unidos, líder mundial em cirurgias plásticas totais naquele ano, segundo cifras de uma associação mundial de cirurgiões plásticos. Uma cirurgia arriscada que envolve transferir gordura do abdome para os glúteos chegou a ser batizada de "Brazilian butt lift", ou lifting de bumbum brasileiro.

Num concurso de beleza para homens e mulheres plus size promovido em Recife em novembro, o tema foi enfrentar a gordofobia e desafiar os estereótipos do corpo perfeito. Durante um momento emotivo, os participantes ficaram sobre o palco enquanto atores lhes gritavam insultos.

Mulheres obesas usando vestuios brilhosos nos bastidores de concurso de beleza
Bastidores do concurso - Dado Galdieri/The New York Times

Muitos brasileiros concordam que a sociedade brasileira, de modo geral, dá mais importância que outros países ocidentais ao corpo feminino bem torneado. E um passeio por praias ou parques do Brasil reforça que há muitos homens e mulheres acima do peso que se sentem muito à vontade com o próprio corpo e não hesitam em usar biquíni ou sunga.

Mas, segundo ativistas, essas pessoas não representam todos os brasileiros. Souza contou que, apesar de viver perto da praia, ela não usou biquíni por 11 anos depois de ser chamada de baleia. "Hoje em dia, quando uma mulher veste um biquíni, isso tem muito mais a ver com sua própria autoaceitação do que com a aceitação social", ela comentou.

Carol Stadtler, fundadora do Belezas do Corpo, outro grupo ativista de Recife, disse que pessoas gordas ganharem aceitação social é uma parte do movimento. Mas possivelmente mais importante que isso, para ela, é conseguir que caibam na sociedade fisicamente.

"Não se trata apenas de ser bonita ou feia ou de ter o corpo da mulher brasileira", ela disse, falando após o concurso, onde, contou, as cadeiras do recinto deixaram marcas doloridas em suas pernas. "É também o fato de não cabermos nas cadeiras."

Tradução de Clara Allain.

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