Governo Bolsonaro descumpre lei que aumentaria oferta de remédios contra Covid no Brasil

Parlamentares e especialistas afirmam que governo deveria ter acionado lei que facilita a quebra de patentes durante emergências sanitárias

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Diego Junqueira
Repórter Brasil

Apesar de a Europa e os Estados Unidos já contarem com ampla oferta de medicamentos eficazes contra a Covid-19, alguns desses remédios ainda não chegaram ao Brasil, como o Paxlovid e o molnupiravir, que evitam o agravamento da doença.

Para mudar esse cenário, o governo federal poderia acionar uma lei considerada umas das melhores do mundo no que se refere à quebra de patentes farmacêuticas, o que permitiria o uso de genéricos no país. Mas restam poucos dias para aplicar essa regra para a Covid —e nada indica que isso irá acontecer.

​A lei 14.200 de 2021 foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em setembro do ano passado, com vetos, após ser aprovada na Câmara e no Senado. A norma facilita o chamado licenciamento compulsório —mais conhecido como "quebra de patentes"— durante emergências sanitárias. Esse mecanismo suspende temporariamente a exclusividade de um laboratório para produzir e vender remédios, vacinas e testes, permitindo que outras empresas importem ou desenvolvam os genéricos.

Presidente Jair Bolsonaro (PL) fala em reunião no Palácio do Planalto
Lei 14.200 foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em setembro do ano passado, mas com vetos - Antonio Molina - 12.jan.22/Folhapress

Quando há uma emergência, como é o caso da pandemia, a lei determina agora ao governo divulgar em 30 dias uma lista de produtos que podem ter a patente suspensa. A gestão Bolsonaro, porém, não cumpriu a medida, mesmo com o desabastecimento de remédios no mercado interno e o início da produção internacional de genéricos. E a janela para que isso aconteça se fecha no próximo domingo (22), quando expira o decreto de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional —uma declaração como esta precisa estar vigente para aplicar a lei.

"O governo está descumprindo a lei", avalia o advogado Francisco Viegas, da Médicos Sem Fronteiras (MSF). "Considerando que ainda estamos em emergência e que já existem medicamentos contra Covid em termos globais, o governo tem obrigação de publicar a lista", concorda o advogado Matheus Falcão, analista de saúde do Instituto Brasileiro do Consumidor (Idec).

Viegas lista outro motivo que obriga o governo a acionar a lei: negociações insatisfatórias entre o Ministério da Saúde e as farmacêuticas, na qual volume, preço ou prazo não atendam à necessidade do país.

Ele cita o caso do Paxlovid, da Pfizer, que deve ser vendido ao Brasil por US$ 250 (R$ 1.240) o tratamento —com dez pílulas. Sua versão genérica, porém, terá preço de custo para 95 países de baixa e média renda, num acordo costurado pela própria Pfizer. "Internacionalmente, há uma grande demanda pelo Paxlovid, mas o volume de entrega é pequeno e não há transparência nos contratos. A gente não sabe a quantidade que a Pfizer está oferecendo ao governo brasileiro, se estão diminuindo o volume em razão de uma falta de suprimentos."

O uso do Paxlovid foi autorizado em março pela Anvisa, para adultos com quadros leves e moderados, mas alto risco de adoecerem gravemente —pessoas com comorbidades, idosos e imunossuprimidos. Nos testes, o remédio reduziu em 89% o risco de hospitalização.

No último dia 6, o Ministério da Saúde aprovou sua inclusão no SUS, mas restringiu o público-alvo para apenas idosos e imunossuprimidos. Procurado pela Repórter Brasil, o ministério não comentou a negociação. Sobre a legislação, a pasta disse que "a medida está em revisão com o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional". Já a Pfizer disse que tem condições de fornecer "o quantitativo que o ministério julgar necessário" e que já encaminhou uma proposta de contrato ao governo, mas não informou os detalhes —veja a nota na íntegra.

A legislação já permitia a quebra de patentes em emergências, mas como o governo Bolsonaro não se movimentou, surgiram dezenas de propostas no Congresso para facilitar o processo, apresentadas por políticos de diferentes partidos. Prevaleceu a do senador Paulo Paim (PT-RS), com alterações incorporadas pelo relator senador Nelsinho Trad (PSD-MS) e pelo deputado Aécio Neves (PSDB-MG).

Embora tenha unido o Congresso, o tema ganhou oposição da indústria farmacêutica. O setor trabalhou para barrar o texto, alegando que os projetos de lei afastariam investimentos estrangeiros e dificultariam a chegada das vacinas ao país, o que não aconteceu. Apesar de o setor ter conseguido recuos importantes no texto final —sobretudo, nos vetos de Bolsonaro— a lei aprovada trouxe avanços.

Um dos principais foi fixar prazo para que o governo divulgue a lista de produtos que podem ter a patente suspensa. "Quando o governo tem liberdade de tempo para fazer algo, acaba não tendo a obrigação de fazer nada", diz Alan Rossi Silva, advogado do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual.

Paxlovid, da Pfizer, é uma das opções de tratamento antiviral oral contra Covid-19 - Jennifer Lorenzini - 8.fev.2022/Reuters

A nova lei também inovou ao permitir a licença compulsória em pedidos de patentes. Isso facilita visto que muitos produtos ainda não possuem as patentes concedidas, como o rendesivir, também indicado para a Covid —em razão de seu alto preço, ele é usado apenas na rede privada no Brasil. A lei também prevê o pagamento de royalties aos proprietários das tecnologias, calculado em 1,5% do valor de venda do genérico.

O texto teve aprovação ampla. Na Câmara, recebeu 425 votos favoráveis —incluindo governistas como o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Todos os partidos orientaram as bancadas a aprová-lo, com exceção do Novo e do líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), que foi procurado pela Repórter Brasil, mas não respondeu. Já no Senado foram 61 votos favoráveis.

​‘Lei perdeu força’

Apesar do consenso, a proposta tinha uma oposição fundamental: Jair Bolsonaro. O presidente sancionou a lei, mas vetou trechos considerados fundamentais por especialistas. Barrou, por exemplo, a autonomia do Congresso para divulgar a lista de produtos passíveis de suspensão de patentes, mantendo a exclusividade com o Executivo. Também vetou o trecho que obrigava as farmacêuticas a transferirem o "know how" de produção, bem como os materiais biológicos essenciais à fabricação.

Não fossem os vetos de Bolsonaro, o Congresso já poderia ter divulgado a lista e o processo estaria encaminhado. "O veto impede o acesso rápido a medicamentos ou insumos que dependam do compartilhamento do material biológico", diz Trad. "Sem isso, praticamente inviabiliza a produção de vacinas e remédios", afirma Paim.

O acesso a estes insumos biológicos é fundamental para reproduzir as vacinas com tecnologias inovadoras, como a de mRNA, utilizadas nas doses de Pfizer e Moderna, mas que o Brasil ainda não sabe produzir.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já colocou os vetos para votação por sete vezes, mas nada ainda foi resolvido
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já colocou os vetos para votação por sete vezes, mas nada ainda foi resolvido - Antonio Molina - 19.abr.22/Folhapress

Prazo vencido

O Congresso tinha 30 dias para confirmar ou derrubar os vetos, mas ainda não o fez. "Oito meses se passaram e o Congresso não tomou providências. A partir de 22 de maio, morre mais um assunto", lamenta o pesquisador Jorge Bermudez. "Tratam o tema como se a pandemia tivesse terminado", afirma Viegas.

Quem pauta os vetos para votação é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que foi procurado pela reportagem, mas não respondeu. O tema já foi incluído sete vezes na ordem do dia. "Cada vez que colocam em votação, cresce o movimento de pressão para que o veto seja derrubado", diz Paim, que resume o impasse. "Apesar da maioria do governo e do lobby das farmacêuticas, os senadores não querem manter esse veto em ano de eleição porque seria um voto pela morte e contra as vacinas e os remédios."

Quando o governo não cumpre a lei, os brasileiros ficam sem acesso a remédios úteis para enfrentar uma pandemia que ainda não terminou, explica Débora Melecchi, da comissão farmacêutica do Conselho Nacional de Saúde. "Mesmo com o fim da emergência sanitária, há milhões de brasileiros com sequelas graves da Covid e que continuarão necessitando das novas tecnologias farmacêuticas."

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