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Cenário de medo e violência na Amazônia leva barco de ação em saúde mental a ribeirinhos

Profissionais se depararam com situações como gravidez na infância e feminicídio; profissionais locais vão ser treinados para atendimento básico

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São Paulo

A primeira imagem que a psicóloga Ana Lúcia Castello teve ao desembarcar em comunidade ribeirinha no rio Tapajós (PA), em fevereiro, foi a de uma menina de 11 anos grávida de cinco meses. Ela esteve na área como voluntária em ação de saúde mental nas regiões da Amazônia Legal.

A profissional faz parte do projeto inédito que leva psicólogos e psiquiatras para essa área amazônica, uma parceria com a Prefeitura de Belterra (PA), a Universidade Federal do Oeste do Pará, e desenvolvida pela ONG Zoé.

Em suas visitas à região do Pará, os voluntários se depararam com situações de violência, como abusos físico, mental e sexual. Também encontraram um cenário de alcoolismo, crises de ansiedade e surtos.

Mulher de costas segura criança no joelho direito, enquanto são atendidas por médica, que está de frente para eles
A médica psiquiatra Raquel Chilvarquer, voluntária da Zoé, faz atendimento no barco Abaré, em comunidade ribeirinha do Pará, no início de junho - Arquivo pessoal

A criança grávida do rio Tapajós tinha contrações quando chegou carregada pelo pai ao Abaré, barco da universidade que atraca em comunidades carentes para oferecer assistência médica.

Ela estava assustada, segundo Ana Lúcia. A jovem disse à psicóloga não fazer ideia que transar engravidava. Em seguida, a menina começou a ter contrações mais fortes e foi encaminhada para a sala de ultrassom. O parto prematuro teve início.

O bebê morreu nove minutos depois de nascer. A garota ficou chocada, segundo a psicóloga. "A parte orgânica dela não estabilizava. Aí apliquei uma técnica de psicologia usada para grandes traumas e ela finalmente conseguiu dormir."

A gravidez na infância chamou a atenção do país recentemente quando uma criança da mesma idade foi proibida de fazer um aborto legal após sofrer um estupro em Santa Catarina. Após a repercussão do caso, a garota conseguiu fazer o procedimento, somente na 29ª semana.

Ana Lúcia, que se emocionou ao contar essa história, afirma que após ficar estável, a criança foi levada para hospital em Santarém, em viagem de três horas numa lancha-Samu. "Ela teve sorte de estarmos lá naquele dia. Ela poderia até ter morrido, isso me angustiou demais."

A médica psiquiatra Raquel Chilvarquer, também do grupo de voluntários, afirma que, geralmente, existe preconceito em tratar a saúde mental, não apenas em populações remotas. Mas a falta de assistência nessa região mais isolada, ela diz, pode agravar ainda mais o quadro dos pacientes.

O auxílio médico é raridade nas comunidades ribeirinhas, acessíveis muitas vezes apenas de barco. Raquel esteve no rio Tapajós na expedição mais recente, em junho, e conta que viu um cenário emocional complexo.

"Ali existe um temor da violência. Isso causa estresse, medo e traumas. Alguns pacientes surtam, quando poderiam estar medicados. Muitos sofrem com insônia, angústias e ansiedade. Geralmente, não passam por tratamento e a amargura se prolonga."

Para Ana Lúcia, doutora em ciências da saúde pela Unifesp, a desinformação é uma das situações mais complicadas. "Preocupa o desenvolvimento emocional das crianças, que enfrentam problemas graves. Elas são muito maltratadas. Vimos tudo em excesso. É preciso um trabalho psicológico urgente lá."

A especialista também se deparou com uma família destroçada após o assassinato de uma jovem por seu noivo. "A comunidade inteira era parente. Fiz atendimento coletivo e individual com as pessoas mais abaladas."

Raquel e Ana Lúcia pretendem continuar o mapeamento de saúde mental e acompanhar pacientes dali. Elas estão treinando profissionais de cidades próximas às comunidades ribeirinhas para atendimento básico, que poderá acontecer mensalmente.

Agente de saúde há dez anos em Belterra, Rafael Siqueira da Silva, 37, tem uma avaliação positiva do trabalho realizado pelos voluntários da Zoé. Ele diz que as pessoas dessa comunidade são carentes e têm dificuldade em acessar o SUS (Sistema Único de Saúde) pela escassez de médicos. "Eles tiraram de uma fila de anos muitos pacientes que aguardavam cirurgia pelo SUS."

A ONG Zoé atua no rio Tapajós desde 2019 com atendimento clínico e cirurgias. Nesse tempo, ajudou a equipar o Hospital Municipal de Belterra para tratamentos mais complexos. Os mais simples, além de exames, são realizados no barco Abaré. A ajuda médica é gratuita.

Cada viagem mais completa ao Pará pode custar R$ 80 mil, sem considerar os insumos, que chegam via doação de empresas, afirma o colonoscopista e médico-cirurgião Marcelo Averbach, do Hospital Sírio-Libanês. Ele é um dos fundadores da Zoé e diretor de expedições.

Redução das disparidades

O acesso à saúde mental é importante em qualquer lugar, de acordo com relatório divulgado este mês pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Segundo o documento, transtornos mentais afetam uma em cada oito pessoas ao redor do mundo e cobram um alto preço na saúde pública.

A falta de mão de obra qualificada nas áreas menos desenvolvidas é uma barreira à melhoria da saúde da população. Formar profissionais de medicina em regiões desprovidas de atendimento médico reduziria as disparidades no Brasil. Essa é a conclusão de estudo do Insper lançado por três pesquisadores que analisaram o comportamento de generalistas.

Uma das responsáveis pela mostra, a professora do Insper Letícia Nunes relata que a decisão do médico sobre onde irá trabalhar está atrelada ao local de nascimento ou da formatura. Apenas depois ele pensa em salários e estrutura no ambiente de trabalho.

"Uma solução seria levar escolas de medicina até regiões afastadas. Atrairia alunos locais, professores e profissionais de saúde. Haveria mais estrutura para essas comunidades."

Averbach concorda. "Para atrair os profissionais, é necessário ter escolas para os filhos, por exemplo. São várias questões a considerar. Não é apenas salário, que geralmente é bem atraente."

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