Cientistas buscam origens do surto de varíola dos macacos

Análise genética sugere que o vírus circula silenciosamente entre os humanos há anos

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The New York Times

Quando os primeiros casos de varíola dos macacos foram identificados, no início de maio deste ano, as autoridades de saúde europeias ficaram perplexas. O vírus não era conhecido por se espalhar facilmente entre pessoas, muito menos infectar dezenas —e logo centenas— de homens jovens.

As origens do surto agora estão ficando mais claras. A análise genética sugere que, apesar de o vírus estar se espalhando rapidamente a céu aberto, ele circula silenciosamente entre os humanos há anos.

As autoridades de saúde já identificaram duas versões da varíola dos macacos entre pacientes nos Estados Unidos, sugerindo pelo menos duas cadeias de transmissão diferentes. Pesquisadores em vários países encontraram casos sem fonte conhecida de infecção, indicando disseminação comunitária não detectada.

Pessoas esperam na fila para serem vacinadas contra a varíola dos macacos em um centro médico de Montréal, no Canadá
Pessoas esperam na fila para serem vacinadas contra a varíola dos macacos em um centro médico de Montréal, no Canadá - Christinne Muschi - 6.jun.22/Reuters

E uma equipe de pesquisa afirmou em maio que a varíola dos macacos já tinha cruzado um limite para a transmissão sustentável de pessoa para pessoa.

As informações genéticas disponíveis até agora indicaram que, em algum momento nos últimos anos, o vírus melhorou a capacidade de se espalhar entre pessoas, disse Trevor Bedford, biólogo evolucionário do centro de pesquisa de câncer Fred Hutchinson, em Seattle.

"Os padrões genômicos sugerem que isso ocorreu por volta de 2018", disse Bedford.

Se o vírus se adaptar para incluir humanos como hospedeiros, os surtos de varíola dos macacos poderão se tornar mais frequentes e mais difíceis de conter. Isso traz o risco de que a varíola se espalhe de pessoas infectadas para animais —provavelmente roedores— em países fora da África, que lutam com esse problema há décadas. O vírus pode persistir em animais infectados, desencadeando esporadicamente novas infecções em pessoas.

"Também podemos transmiti-lo de volta para animais, que podem espalhar a doença na vida silvestre e de volta aos humanos", disse Sagan Friant, antropólogo na Universidade Estadual da Pensilvânia que estuda as interações homem-animal na Nigéria há cerca de 15 anos.

Quanto mais tempo demorarmos para conter o vírus, maiores as chances de ele encontrar um novo lar permanente em pessoas ou animais, disse Friant.

Na última quarta-feira (22), os Estados Unidos identificaram 156 casos em 23 estados e no Distrito de Colúmbia. O número global ultrapassou 3.400 casos confirmados, e outros 3.500 casos estão sendo avaliados, triplicando os números de duas semanas atrás.

Na África, oito países relataram mais de 1.500 casos suspeitos e 72 mortes até 10 de junho, a maioria delas no Congo.

A varíola dos macacos é um vírus grande de DNA de fita dupla, cerca de sete vezes maior que o coronavírus. Os vírus baseados em DNA podem corrigir seus próprios erros quando replicam seu material genético.

Eles podem ter apenas uma ou duas mutações por ano, em comparação com 20 a 30 mutações para um vírus de RNA, como o coronavírus.

Mas o vírus da varíola dos macacos parece ter acumulado um número inesperadamente alto de mutações —quase 50 em comparação a uma versão que circulou em 2018, segundo análises preliminares.

Das 47 mutações identificadas em uma análise, 42 contêm a clara assinatura de uma enzima chamada Apobec3. Essa enzima, descoberta por pesquisadores que estudavam o HIV, é o chamado fator de defesa do hospedeiro —uma arma do sistema imunológico que animais e pessoas usam para desarmar vírus como a varíola dos macacos.

A enzima basicamente força os vírus a cometer erros quando tentam se replicar, fazendo que eles se autodestruam. Os camundongos possuem apenas uma versão dessa enzima, enquanto os humanos têm sete. O rápido acúmulo de mutações, característico da enzima desde 2018, sugere que a varíola dos macacos pode ter mudado para pessoas como hospedeiras naquela época, disse Bedford.

Não está claro como as mutações podem alterar o vírus. Das 48 mutações identificadas na Grã-Bretanha, 21 podem afetar a forma como a doença se espalha, sua gravidade e como ela responde a um tratamento chamado tecovirimat, de acordo com a Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido.

Mas como as mutações introduzidas pela enzima Apobec3 se destinam a danificar o vírus, sua quantidade por si só não é preocupante, disse Michael Malim, especialista em vírus no King's College, em Londres, que descobriu a Apobec3 em 2002. O efeito das mutações é "mais provavelmente debilitante", disse ele. Comparar a versão atual do vírus com amostras dos últimos anos pode ajudar a entender como ele evoluiu, mas essa informação é escassa. A Nigéria não tinha capacidade para sequenciar material genético até 2017.

Desde então, cientistas do país analisaram as sequências de cerca de 50 casos de varíola dos macacos, de acordo com o doutor Ifedayo Adetifa, diretor do Centro de Controle de Doenças da Nigéria. Sem equipamento especializado ou o conhecimento necessário para uma análise rápida, entretanto, os cientistas ainda não concluíram o trabalho, disse ele.

O Bavarian Nordic, em Copenhague, Dinamarca, é o único laboratório no mundo que produz vacina contra a varíola dos macacos
O Bavarian Nordic, em Copenhague, Dinamarca, é o único laboratório no mundo que produz vacina contra a varíola dos macacos - Liselotte Sabroe/Ritzau Scanpix - 13.jul.20/AFP

Embora os pesquisadores tenham recebido vários pedidos de dados de fora da Nigéria, Adetifa disse que vai esperar para publicar seu trabalho para evitar que equipes com mais recursos os superem e levem o crédito.

"Sou a favor do compartilhamento aberto de dados e tudo o mais", disse ele. "A questão é: quem se beneficia?"

Alguns especialistas alertam há anos que a erradicação da varíola em 1980 deixou o mundo vulnerável à família mais ampla de poxvírus e aumentou as chances de a varíola dos macacos evoluir para um patógeno humano bem-sucedido.

Na África Ocidental, a incidência de varíola dos macacos aumentou pelo menos vinte vezes desde 1986. Nos países africanos em geral, disse Adetifa, "suspeitamos de certa subnotificação, porque houve uma conscientização relativamente baixa e talvez baixa percepção do risco da varíola do macaco". A Nigéria está intensificando a vigilância, e o número de casos poderá aumentar conforme mais pessoas se conscientizem do vírus, acrescentou.

Embora a varíola dos macacos tenha uma erupção cutânea distinta que aparece nas palmas das mãos e solas dos pés, é frequentemente confundida com varíola. Muitos homens no surto atual têm lesões na genitália, mas podem ser confundidas com infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis, gonorreia e clamídia.

Mão de uma criança com lesão provocada pelo vírus da varíola dos macacos após ele ter sido mordido por um cão infectado em 2003, em Dorchester (EUA)
Mão de uma criança com lesão provocada pelo vírus da varíola dos macacos após ele ter sido mordido por um cão infectado em 2003, em Dorchester (EUA) - Center For Disease Control/Reuters

Pesquisadores na Itália e na Alemanha relataram descobertas de DNA de varíola dos macacos em sêmen humano, mas não está claro se o vírus se espalha dessa maneira ou está apenas presente no sêmen e nas secreções vaginais.

A disseminação entre homens jovens com úlceras genitais foi observada pelo menos uma vez antes. Em 2017, a Nigéria registrou 228 casos suspeitos de varíola dos macacos e confirmou 60. O vírus se disseminou principalmente entre homens jovens que tinham úlceras genitais.

A experiência da Grã-Bretanha indica como pode ser complicado rastrear contatos de um vírus que pode ser transmitido sexualmente, especialmente nos casos em que as pessoas infectadas tiveram vários parceiros anônimos. Em uma análise inicial de um subconjunto de casos, as autoridades disseram que conseguiram obter os nomes de menos de um terço dos 78 contatos sexuais relatados.

Muitos casos na África foram atribuídos a contatos com animais silvestres ou ao uso de produtos animais para práticas medicinais ou culturais.

À medida que o desmatamento e a urbanização aproximam pessoas e animais, mais vírus podem saltar para hospedeiros humanos. A varíola dos macacos é mais propensa a passar de roedores para humanos.

Existem cerca de 2.000 espécies de roedores em todo o mundo, compondo 40% de todas as espécies de mamíferos. O esquilo-de-corda africano é um dos principais candidatos a reservatório primário da varíola, mas há outros candidatos, incluindo camundongos-listrados e arganazes, ratos-gigantes, ratos-de-nariz-enferrujado e porcos-espinhos-de-cauda-escovada.

Em um surto em 2003 nos Estados Unidos, um carregamento de ratos gambianos importados da África transmitiu a varíola aos cães-da-pradaria, que infectaram 71 americanos. Mas as autoridades não encontraram sinais do vírus em animais nos Estados Unidos depois que a onda de casos terminou.

Não há garantia de que teremos sorte desta vez. "Esses transbordamentos de outras espécies, o que eles significam e qual é a trajetória são muito imprevisíveis", disse Malim. "E isso está ocorrendo cada vez mais."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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