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Brasil ainda sofre para levar saúde mental aos extremos 20 anos após reforma

Rede erguida nas últimas décadas continua desigual e subfinanciada e lida com novos dilemas

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Ambulância circula pela cidade do Oiapoque (AP), na fronteira com a Guiana Francesa, que sofre com a dificuldade de acesso à saúde mental Adriano Vizoni/Folhapress

Macapá e Oiapoque (AP)

Se um carro "normal" cruzar seu caminho, é um bom sinal. Quer dizer que as pedras improvisadas nos buracos de lama ao longo da estrada vão funcionar, a caminhonete não vai atolar e, sem imprevistos, a viagem só vai durar de 8 a 10 horas.

Pior seria se você estivesse de ônibus, porque quando ele quebra se vão até dois dias. É que a pista de asfalto em construção há quatro décadas foi deixada no meio, e os últimos cem quilômetros têm que ser percorridos na terra, encharcada pela chuva.

As recomendações são de quem pega a rodovia todo mês: o carioca Carlos Estevão, o único psiquiatra que atende no Oiapoque, no Amapá. A última cidade ao Norte do país simboliza o longo trajeto que o Brasil tem que percorrer para levar saúde mental a todos os seus extremos.

Mesmo depois de mais de 20 anos de construção e capilarização da rede pública, com o fechamento dos manicômios e uma reforma psiquiátrica que é referência no mundo, ainda temos serviços desiguais e subfinanciados para enfrentar uma explosão de transtornos psíquicos.

A saúde mental fica na raspa da raspa, resume a assistente social de um dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) amapaenses. Só cerca de 1% do orçamento nacional de saúde vai para a rede de atenção psicossocial, bem abaixo dos 6% receitados pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

O valor é irrisório diante de um problema que atinge mais de um quarto da população ao longo da vida e é uma das principais causas de afastamentos do trabalho. Também é insuficiente para lidar com fatores não esperados lá atrás, como a pandemia de Covid e o aumento do uso de crack.

Em meio às dificuldades antigas, há um debate que já dura cerca de cinco anos. De um lado, trabalhadores da área acusam os governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) de um desmonte da rede. De outro, o Ministério da Saúde e principalmente grupos de psiquiatras defendem que é preciso fortalecer equipamentos de alta complexidade.

Para o paciente, o primeiro gargalo surge numa rede básica que não previne nem absorve como deveria os casos de depressão e ansiedade, o grosso da demanda. Dos adultos do primeiro grupo que dizem ter recebido assistência médica em 2019, só um terço o fez na atenção primária, segundo o IBGE.

​A formação e o preparo das equipes para lidar com casos de saúde mental nessa fase costumam ser falhos, somados a um estigma que esse tipo de paciente tem. Como o profissional acha que não tem capacidade, prefere ficar longe, afirmam servidores de diferentes regiões do país.

No Oiapoque, o psicólogo Torricha de Souza, 29, se divide entre as cinco unidades básicas de saúde (UBSs) durante a semana, incluindo a de Vila Vitória, bairro de terra batida que liga o Brasil à Guiana Francesa. "Normalmente a agenda fica cheia. O ideal é que eu atenda quatro por turno, mas às vezes atendo cinco de manhã e sete à tarde."

Ali, Osmarina Francalino cuida de Cosme e Damião, os gêmeos que há 24 anos carregam uma psicose que ela não sabe dizer o nome. "O médico escreveu num papel para mim, é esquizofrenia parece", diz a costureira de 67 anos.

O abastecimento de certos medicamentos na cidade depende dos "pirateiros", homens que cobram para percorrer os 600 km até Macapá num veículo 4x4. "Não chegou a faltar ainda, mas estou com medo porque ele não pode deixar de tomar. Dia 10 prometeram na farmácia", conta ela.

A capital, que acumula a demanda de todo o estado, só ganhou psicólogos nas unidades básicas no ano passado. Mesmo assim, muitos dos pacientes que chegam são encaminhados aos Caps, que deveriam tratar com consultas, oficinas e grupos de conversa apenas casos de psicose ou de dependência em álcool e drogas.

Isso porque agora eles têm onde atender. Até alguns meses atrás, o acolhimento do principal centro era feito debaixo de árvore, o ventilador ameaçava estourar, e o teto voava quando ventava.

Com prontuários ainda escritos à mão, pouco acompanhamento e nenhuma unidade 24 horas ou abrigo, boa parte dos doentes acaba perdida no sistema ou nas ruas. "Dizemos que é uma porta de entrada para lugar nenhum", critica Karol Duarte, representante do Movimento da Luta Antimanicomial amapaense.

Coordenador estadual de saúde mental, o psicólogo Mário Denis Costa admite que a rede está muito aquém, mas cita avanços no último ano. Prevê a criação de dois novos Caps municipais na capital até 2023 e diz orientar cidades do interior para que façam convênios com os vizinhos e abram mais unidades –é preciso ao menos 15 mil habitantes para isso, pelas regras federais.

"Estamos tentando mudar essa cultura de que é o estado que tem que fazer essa captação para ter o Caps, a prerrogativa precisa ser dos municípios", argumenta Costa, que "vê um retrocesso muito grande" nas políticas federais. "Não conseguimos acessar recursos facilmente como antes."

A paralisação na habilitação de novos Caps pelo Ministério da Saúde é a principal crítica dos que apontam um esfacelamento da saúde mental no SUS nos últimos anos. Eles defendem que a verba ampliada para leitos hospitalares deveria estar sendo investida no tratamento nos territórios, como preconiza a reforma psiquiátrica.

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Reportagens investigam a explosão de problemas de saúde mental no Brasil e como o SUS tem lidado com os casos

  1. A explosão dos transtornos mentais no Brasil

  2. A capacidade do nosso sistema público

  3. O fim dos manicômios

  4. Mitos e preconceitos na saúde mental

  5. Temos cura?

No Oiapoque, a única unidade permitida pelos seus 28 mil habitantes não dá conta de misturar psicóticos, usuários de drogas e crianças. "É assustador. Em 26 anos de saúde pública, eu ainda não sei como fazer isso", diz o psiquiatra carioca Carlos, que já rodou todo o Amapá num projeto itinerante criado por ele, mas que não foi levado adiante pelo estado.

"O Brasil precisa trabalhar a ideia de que algumas cidades com características específicas, e garanto que o Oiapoque tem todas elas, deveriam receber um olhar diferenciado em termos de verba e equipamento", defende ele, citando particularidades da fronteira como isolamento, tráfico, prostituição, mineração e grande comunidade indígena.

Hoje, há 2.796 Caps registrados no país e mais cerca de 450 na fila. Se aprovados, eles recebem um incentivo inicial baixo para serem implementados e depois uma quantia constante que varia de local para local. Sem o registro, têm que ser custeados unicamente pelos municípios e/ou estados.

O psiquiatra Rafael Bernardon, coordenador-geral de saúde mental no Ministério da Saúde, rebate que suspendeu novos pedidos para que a pasta avalie e habilite os já inseridos. Ele argumenta que antes isso era feito sem planejamento e a plataforma ficava aberta, criando a ilusão de que haveria recursos para todos.

"Estamos demandando dos municípios um planejamento regional: definam quais são mais importantes", diz. Essa, porém, não é sua prioridade. A visão do ministério é de que o Caps é um dos elos da rede, não o principal, e que o grande buraco está no atendimento das crises, portanto nos hospitais.

Bernardon aposta ainda na telemedicina para lugares distantes e no modelo de ambulatórios de saúde mental para sanar o limbo em que ficam pacientes com depressão e ansiedade. São unidades de portas abertas voltadas a casos crônicos, mas não emergenciais, que normalmente existem em cidades maiores.

Unidade Básica de Saúde (UBS) de Vila Vitória, bairro mais afastado do Oiapoque (AP) - Adriano Vizoni/Folhapress

Ele nega que isso represente um desmonte da reforma psiquiátrica: "O mundo todo está vendo a queda dos suicídios, que estão crescendo no Brasil. Isso é indissociável do modelo que temos, que precisa ser aprimorado. Ninguém quer regredir para a década de 1970".

Ainda é difícil, porém, garantir o que dá certo ou não. O país não tem um sistema de avaliação consistente dos milhares de serviços que foram criados nas últimas décadas. "Acho que está na hora de falarmos em qualidade, e não no nome das coisas", analisa o psiquiatra Giovanni Salum, professor da UFRGS (Universidade Federal do RS).

O pesquisador está coordenando um grande censo sobre as estruturas, os processos e os resultados da rede, que foi encomendado pelo Ministério da Saúde e deve ser concluído até o fim do ano. "A discussão fica num nível muito ideológico e pouco técnico", avalia.

Por enquanto, num país tão heterogêneo, a qualidade dos serviços continua muito a cargo da dedicação de cada profissional de saúde. A enfermeira Regiane Picanço, 48, por exemplo, já virou "mãe, pai, filha e sobrinha" para os frequentadores do Caps do Oiapoque.

"Tudo que você vê aqui saiu do meu bolso. Como vou fazer arteterapia se não tem material?", questiona ela, enquanto um de seus pacientes cola miçanga por miçanga num grande morango vermelho delineado na folha sulfite. "Você precisa ter amor pela saúde mental, senão não dá."

Regiane Picanço, 48, enfermeira do único Centro de Atenção Psicossocial do Oiapoque (AP) - Adriano Vizoni/Folhapress

Onde buscar atendimento?

Rede de Atenção Psicossocial
Mapa mostra as unidades da rede habilitada pelo Ministério da Saúde até set.2020

Mapa Saúde Mental
Site mapeia diversos tipos de atendimento: www.mapasaudemental.com.br

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Voluntários atendem ligações gratuitas 24 horas por dia no número 188: www.cvv.org.br.


O que é a série Brasil no divã

Depressão, ansiedade, burnout, esquizofrenia, suicídio: a explosão dos transtornos mentais foi debatida durante mais de dois anos de pandemia, mas pouco se aprofundou sobre o nosso sistema público de saúde mental, que passa por uma grande reforma psiquiátrica há mais de 20 anos. A série Brasil no Divã discute o tamanho do problema, a capacidade do SUS, o fim dos manicômios, mitos e preconceitos que cercam o assunto e as saídas possíveis.

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