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Por que a pílula da Pfizer para conviver com a Covid não é um remédio milagroso

O antiviral Paxlovid está sendo amplamente prescrito, apesar de sua eficácia ser questionada

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Hannah Kuchler
Londres | Financial Times

No final do ano passado, pareceu que a chave para "conviver com a Covid" havia sido encontrada, finalmente. O antiviral Paxlovid, da Pfizer, foi aprovado, oferecendo às pessoas infectadas pelo coronavírus a opção de tomar um comprimido para combater seus sintomas, reduzindo as hospitalizações e outros efeitos prejudiciais da doença.

Mas novos estudos levantam dúvidas significativas sobre um fármaco que chegou a ser mencionado pelo presidente americano Joe Biden em seu discurso anual do Estado da União.

Entre essas dúvidas estão até que ponto o Paxlovid funciona bem com pacientes de risco mais baixo, por que alguns pacientes sofrem um "rebote" da Covid —os sintomas ressurgem depois que param de tomar o medicamento—, e a possibilidade de o vírus adquirir resistência a ele.

Comprimidos de Paxlovid, remédio contra a Covid-19
A capacidade do Paxlovid de proteger pacientes de alto risco da Covid-19 é um grande ponto a seu favor - Joe Raedle/AFP

Walid Gellad, diretor do Centro de Política e Prescrição Farmacêutica da Universidade de Pittsburgh, disse que o Paxlovid funciona bem para pacientes de risco mais alto, mas que ainda há muita incerteza em torno de como deve ser usado.

"Num primeiro momento houve a esperança de que ele seria não exatamente um remédio milagroso, mas a solução para a Covid", ele disse. "Mas acho que isso não vai acontecer."

Com a eficácia das vacinas diminuindo diante da chegada de novas variantes, os antivirais —que reduzem a capacidade de um vírus se replicar— são fundamentais para proteger novas ondas de pacientes. À medida que os Estados Unidos foram abandonando as quarentenas da pandemia, o governo foi promovendo o uso do Paxlovid. Desde a primavera do hemisfério norte as prescrições do medicamento não pararam de aumentar, e na semana passada as regras foram alteradas para permitir que os pacientes comprem o Paxlovid nas farmácias, sem a necessidade de receita médica.

O antiviral está sendo muito menos usado em outros países, mas os governos da França e Alemanha estão procurando incentivar sua adoção, e a Austrália abrandou os critérios que qualificam pacientes para usá-lo.

O Paxlovid de fato teve resultados impressionantes em seus ensaios clínicos de último estágio, reduzindo o risco de hospitalização em 89%. Foi muito melhor que seu único rival, o antiviral Lagevrio (molnupiravir), da Merck, tomado por via oral, que reduziu o risco de hospitalização em cerca de 30%. A eficácia do Paxlovid se traduz em vendas impressionantes: a Pfizer prevê vendas de US$ 22 bilhões este ano, enquanto a previsão da Merck para o Lagevrio é de entre US$ 5 bilhões e US$ 5,5 bilhões.

Mas os ensaios clínicos tiveram limitações. Uma delas foi o fato de ter sido feitos com pessoas não vacinadas, sendo que a maioria das pessoas que toma Paxlovid hoje são vacinadas.

Além disso, os ensaios enfocaram pacientes de alto risco, como os que apresentam comorbidades. A Pfizer só anunciou dados sobre pacientes de risco médio no mês passado, quando interrompeu um ensaio porque uma análise interna mostrou que o Paxlovid não era eficaz para reduzir sintomas. O medicamento reduziu as internações hospitalares, mas o estudo não foi grande o suficiente para permitir uma conclusão estatisticamente significativa sobre esse ponto.

Outro problema é que o Paxlovid é inapropriado para alguns pacientes porque precisa ser tomado com ritonavir, medicamento usado para tratar o HIV que interage com alguns medicamentos comuns.

Mesmo assim, o governo americano está incentivando fortemente seu uso.

Gellad disse que a administração gosta de citar estatísticas para mostrar que está combatendo a pandemia, mas acrescentou: "O número de prescrições médicas que você distribui não é um bom critério de sucesso em lidar com a Covid".

O infectologista Davey Smith, da Universidade da Califórnia em San Diego, disse que, na prática, médicos andam prescrevendo Paxlovid amplamente. "Todas pessoas que contraem Covid querem ser tratadas com o remédio, quer sejam de alto risco ou não, de modo que a demanda por ele é grande."

Mas ele acrescentou que outra pergunta importante é se o Paxlovid funciona igualmente bem contra a ômicron, dado que foi estudado principalmente quando a variedade delta era dominante. A Pfizer disse que, em estudos de laboratório, o medicamento demonstra atividade antiviral contra as subvariantes da ômicron BA.1 e BA.2 e que sua estrutura significa que provavelmente conseguirá combater igualmente bem as subvariantes BA.4 e BA.5.

Smith analisou um dos problemas que tiraram um pouco do brilho do Paxlovid. Alguns pacientes (incluindo o assessor médico chefe do presidente, Anthony Fauci) teriam sofrido um "rebote", testando positivo para o vírus dias depois de testes terem indicado que haviam superado o vírus.

A Pfizer disse que esse rebote é incomum e que também ocorreu entre os participantes de seus ensaios que tomaram placebo, sugerindo que isso ocorre com alguns pacientes, independentemente de tomarem o Paxlovid ou não.

Mas Michael Mina, ex-professor de Harvard e hoje diretor médico da empresa de testes eMed, desconfia que isso possa ocorrer em entre 20% e 30% dos pacientes. Ele está iniciando um ensaio para investigar a frequência com que ocorre em pacientes que tomaram Paxlovid.

"É muito importante para nós conhecermos essa frequência. Se as pessoas estão parando de tomar o Paxlovid depois de cinco dias, seguindo as orientações do CDC, e então voltando para o mundo, mas 12 dias mais tarde estão altamente infecciosas, precisamos saber", ele disse.

É muito importante para nós conhecermos essa frequência. Se as pessoas estão parando de tomar o Paxlovid depois de cinco dias, seguindo as orientações do CDC, e então voltando para o mundo, mas 12 dias mais tarde estão altamente infecciosas, precisamos saber

Michael Mina

Diretor médico da empresa de testes eMed

Um sinal positivo é que, no estudo de caso de Smith, os pacientes que sofreram o rebote não transmitiram a Covid a seus conhecidos. Depois de examinar como funciona o rebote, Smith desconfia que seja um problema ligado à dosagem do remédio: talvez o Paxlovid precise ser tomado por mais de cinco dias ou talvez a dose precise ser mais alta.

Felizmente, ele não encontrou evidências de que o rebote estaria sendo provocado por uma resistência que o vírus estaria adquirindo ao medicamento. Contudo, os vírus frequentemente se adaptam para impedir um antiviral de funcionar, e dois estudos recentes mostraram como o Paxlovid pode colocar pressão sobre o vírus para que sofra mutações.

Em um estudo chefiado pelo virologista belga Dirk Jochmans, o vírus passou por mutações que o deixaram 20% menos suscetível ao medicamento. Em outro estudo, este dirigido pela virologista Judith Margarete Gottwein, da Universidade de Copenhague, ele desenvolveu duas mutações que o tornaram 80% menos suscetível.

Gottwein disse que o vírus resultante era muito eficaz. "É muito assustador. Provavelmente persistiria após o final do tratamento e se propagaria."

Paxlovid e Molnupiravir (Lagevrio) são dois medicamentos aprovados no tratamento da Covid-19
Paxlovid e Molnupiravir (Lagevrio) são dois medicamentos aprovados no tratamento da Covid-19 - Jennifer Lorenzini - 8.fev.22/Reuters

Os estudos submeteram o Paxlovid a um tipo de pressão que seria muito incomum no mundo real, e a Pfizer destacou que não observou até agora nenhuma mutação desse tipo fora dos laboratórios.

Mas os estudos servem de aviso sobre o que pode ocorrer se, por exemplo, o antiviral não eliminasse o vírus em um paciente imunocomprometido, onde o vírus já teria mais facilidade em persistir e evoluir. Gottwein considera que por esse motivo os antivirais nunca devem ser tomados isoladamente.

David Ho, virologista na Universidade Columbia, pensa que o grande número de pessoas que estão tomando Paxlovid nos Estados Unidos pode criar um problema futuro. "Quanto mais usamos o remédio, maior é a probabilidade de encontrarmos resistência", ele explicou.

Há outros antivirais que estão sendo desenvolvidos: a empresa farmacêutica Veru, de Miami, criadora de produtos para oncologia, recentemente publicou resultados positivos para seu medicamento, que é tanto antiviral quanto anti-inflamatório, mostrando que reduziu em 55% as mortes de participantes hospitalizados com Covid grave.

O mais provável é que o Paxlovid acabe sendo usado em combinação com outro medicamento ou que seja substituído por outro. Um antiviral oral produzido pela companhia chinesa Shanghai Junshi Biosciences teve desempenho melhor que o Paxlovid em ensaios clínicos, reduzindo o tempo médio de recuperação dos pacientes. Mas ainda precisa completar um ensaio internacional de fase 3.

A empresa farmacêutica japonesa Shionogi vem tendo resultados promissores para seu próprio antiviral oral, que eliminou o vírus rapidamente em uma população em sua maioria vacinada. Takeki Uehara, vice-presidente do departamento de pesquisas clínicas da Shionogi, disse que a estrutura diferente de seu medicamento faz com que permaneça no corpo por muito mais tempo e não precise ser tomado juntamente com ritonavir. Isso, segundo ele, pode reduzir o risco de rebotes.

Os resultados do ensaio de fase final da Shionogi na Ásia serão divulgados em greve, e um ensaio internacional maior, realizado em colaboração com os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, deve ter seus resultados anunciados em outubro.

Mas, no momento em que nos encaminhamos para mais uma onda de Covid-19, o Paxlovid ainda é de longe o antiviral dominante. O analista Akash Tewari, da empresa de serviços financeiros Jefferies, disse que, apesar das preocupações levantadas por estudos recentes, a capacidade do Paxlovid de proteger pacientes de alto risco é um grande ponto a seu favor.

Tradução de Clara Allain

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