Apesar de desafios, Brasil mudou paradigma na saúde mental

Com rede capilarizada, iniciativas independentes e centros de excelência, país pode expandir soluções

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mulher de máscara, casaco, lenço rosa na cabeça e prancheta na mão abraça homem com camisa de time, de costas

Profissional de saúde abraça paciente do Consultório na Rua no centro de Campinas (SP) Adriano Vizoni/Folhapress

Campinas e São Paulo

"Saúde mental sem rede não é saúde mental", diz a enfermeira Roberta dos Reis apontando para um emaranhado de fios coloridos sobre o mapa pendurado na parede. É tanto barbante que mal dá para ver as ruas de Campinas, interior de São Paulo.

As linhas interligam etiquetas com os nomes das unidades de saúde da região, alfinetadas no quadro bem no meio do corredor: "Todo mundo tem que olhar para isso o tempo todo", afirma a coordenadora do Caps AD (Centro de Atenção Psicossocial) Sudoeste.

O município leva a sério a necessidade de integração entre os serviços, um dos pilares do SUS (Sistema Único de Saúde). Por isso, é citado como "exemplo de como um país pode implementar serviços em larga escala" pelo guia de boas práticas da OMS (Organização Mundial da Saúde) do ano passado.

Mapa mostra integração de unidades de saúde no Caps AD (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) em Campinas, no interior paulista - Adriano Vizoni/Folhapress

A cidade mostra como, apesar dos inúmeros desafios que ainda enfrenta na área, o Brasil conseguiu mudar em duas décadas, em nível nacional, o paradigma do tratamento em saúde mental, tirando o paciente do manicômio e o colocando no centro das políticas públicas.

Ao mesmo tempo, foi se enchendo de iniciativas independentes para resolver o problema nos seus bairros, empresas e escolas, além de erguer polos de excelência em pesquisa e ensino da psiquiatria que são referência mundo afora.

Agora, precisa avançar no debate de como avaliar, melhorar e expandir as soluções para a escalada de transtornos psíquicos, ainda longe de um consenso. Colocar mais peso e dinheiro na rede básica, nos Caps, nos ambulatórios ou nos leitos para crises estão entre as mudanças discutidas.

Brasil no Divã

Série de reportagens investiga a explosão de problemas de saúde mental no Brasil e como o SUS lida com os casos

  1. A explosão dos transtornos mentais no Brasil

  2. A capacidade do nosso sistema público

  3. O fim dos manicômios

  4. Mitos e preconceitos na saúde mental

  5. Temos cura?

Campinas, no caso, é reconhecida por seu modelo territorial. Fechou seu único hospital psiquiátrico em 2017, reduziu o tempo médio de internação em hospital geral de 60 para 15 dias, ampliou o cardápio de serviços e investiu 9% do seu orçamento de saúde na rede de atenção psicossocial, ante uma marca federal de 1%.

Hoje com equipes espalhadas por todas as regiões, o município de 1,2 milhão de habitantes conhece pelo nome quase todos os usuários do sistema. "Quando o seu João chegar aqui, todo mundo já vai saber quem ele é, qual o seu caso e o contexto do lugar onde ele mora", exemplifica Roberta.

A primeira estratégia é ir até o "seu João". Por isso priorizam políticas como o Consultório na Rua, que atua onde grande parte das pessoas com transtornos mentais ou dependência química vive. Foi assim que convenceram Thiago Martins, 27, a se tratar num Caps numa manhã de junho.

"Não quero mais usar droga, olha como eu tô, não sou assim", diz ele depois de ser medicado pela veia na tenda do programa, mostrando as roupas sujas, os dentes quebrados e a mão direita inchada por uma picada de aranha.

Qualquer motivo é uma oportunidade para que o usuário dê entrada e depois continue nos serviços, explica a equipe. O Caps da região onde Thiago vive é então avisado por telefone e, mais tarde, comunica aos envolvidos que ele de fato chegou lá.

"Não adianta eu te dar um papelzinho e falar ‘vai’. Na semana que vem eu tenho que ir até a sua UBS [Unidade Básica de Saúde] ou até o hospital em que você foi internado para discutir o que deu certo, o que não deu, seus fatores de risco, suas relações familiares", afirma Marcelo Bruniera, coordenador municipal de saúde mental.

É assim que o psicólogo descreve o chamado "matriciamento", conceito de saúde caro à cidade, também posto em prática por meio de reuniões periódicas em vários níveis de gestão e inclusive com outras áreas, como instituições de ensino e do Judiciário.

Na base do tratamento está ainda o protagonismo e a autonomia dos pacientes. Nos 14 Caps, mantidos abertos na pandemia, eles se reúnem em assembleias e escolhem um conselho para atuar com os gestores.

"Precisamos de uma reunião urgente com o secretário", cobra o representante Valter Eustáquio, 75, que às 11 horas da manhã na unidade Sudoeste diz que, se não estivesse ali, "já tinha tomado mais de uma garrafa de pinga".

No Núcleo de Oficinas de Trabalho, também aprendem ofícios como culinária, marcenaria ou agricultura recebendo uma bolsa pelo que vendem. O edifício é do antigo hospício, onde Benedito Dias, 66, chegou a ser internado com depressão grave. "Se eu estivesse num hospital até hoje, não estava bom assim", fala ele, exibindo os vitrais que fez.

Homem mais velho, branco, de óculos, chapéu cinza e camiseta azul olha para a câmera com as mãos em cima da mesa, sobre a qual está um abajour com mosaico de vidro
Benedito Dias, 66, o Benê, hoje recebe uma bolsa pelos objetos de vidro que produz no Núcleo de Oficinas e Trabalho (NOT) de Campinas (SP) - Adriano Vizoni/Folhapress

Quando o paciente surta, vai para as emergências, os 72 leitos em Caps 24 horas ou outros 20 no hospital geral. "Por enquanto não precisamos abrir mais", diz Bruniera. "Mas com o aumento dos casos na pandemia temos discutido como fortalecer a retaguarda. A rede é muito bem estruturada, o que não significa que não é debatida o tempo todo."

Para além dessa assistência psicossocial formal —e muitas vezes no vácuo dela—, proliferaram no Brasil iniciativas criadas em paralelo, seja por empresas, organizações sem fins lucrativos, escolas, profissionais ou pelos próprios pacientes e familiares.

Um movimento que tem se expandido na saúde mental é o "recovery", que consiste em ajudar a pessoa com transtorno mental a retomar o controle de sua própria vida, especialmente com o suporte daqueles que já passaram por experiências parecidas.

José Alberto Orsi, 55, é uma das referências no assunto no Brasil, à frente da Abre (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia). Contornou todas as profecias de um médico de Miami que, em seu segundo surto, afirmou que ele teria que ser tutelado até morrer.

"Nessa crise eu achava que era o Adão bíblico, saí nu na piscina, fui preso pela polícia", conta ele, terceira geração da família com a doença. Largou o emprego, rompeu o noivado e deixou de concluir o mestrado. O quarto surto, em meados de 2000, "não destruiu nada porque já estava tudo destruído".

Homem branco e de cabelos grisalhos olha para a câmera de braços cruzados em frente a um canteiro de plantas
José Alberto Orsi, 55, promove a independência de pessoas com transtornos mentais por meio da educação - Adriano Vizoni/Folhapress

Teve então o diagnóstico fechado, acertou os remédios e terapias e passou a reconstruir a vida com a ajuda de cursos e pessoas que conheceu na Abre, surgida na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Agora, faz doutorado sobre o assunto ali.

Orsi quer expandir a reabilitação pela educação com o projeto Recovery College, o primeiro na América Latina a ofertar bolsas de estudo adaptadas em parceria com fundações e faculdades. "O Caps é um modelo importante, mas asilar. O ideal é que uma hora a pessoa tenha alta e os rituais da vida sejam vividos, coisa que hoje é privilégio dos ricos", opina.

Parte das comunidades ribeirinhas da Amazônia na região de Belterra (PA), por exemplo, só viu psicólogos e psiquiatras pela primeira vez alguns meses atrás, quando a ONG Zoé levou profissionais de barco para atender e treinar equipes locais, numa parceria com a prefeitura.

O psiquiatra Giovanni Salum, professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), vê a disseminação de iniciativas tão diversas como resultado de uma oposição entre cuidado humanizado e cuidado técnico que se criou na saúde mental no país.

Professora com suéter vermelho, de costas, ensina passo de dança a alunas reunidas num círculo, incluindo uma mulher de cadeira de rodas
Aula de dança do ventre em Centro de Convivência de Campinas (SP), que oferece atividades para integrar pacientes de saúde mental e a comunidade - Adriano Vizoni/Folhapress

"Por um lado, isso valorizou inventar técnicas muitos legais: rádios, hortas, cooperativas. O Brasil é cheio disso. Por outro, fez com que não avaliássemos quais medidas funcionam de fato. Essa dicotomia não deveria existir, a técnica é o instrumento para poder ser humano e dar o melhor tratamento a uma pessoa", analisa.

E técnica é uma vantagem no Brasil, que tem uma produção científica de excelência na área. "Temos quatro programas de pós-graduação de nível internacional: USP, USP Ribeirão Preto, Unifesp e UFRGS", cita Jair Mari, coordenador da pós-graduação da psiquiatria da Unifesp e do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (Caism).

Nos laboratórios do Instituto de Psiquiatria vizinho, da USP, por exemplo, pesquisadores trabalham para tentar encontrar meios de diagnosticar doenças mentais precocemente, por meio de "biomarcadores" no sangue, na urina ou na saliva, e não apenas pela avaliação clínica.

Em 2018, a revista científica Brazilian Journal of Psychiatry alcançou a maior pontuação de publicações da medicina no Brasil e da especialidade na América Latina, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Resta ao país usar essas vantagens para amplificar o que já funciona e mudar o que tem nos impedido de evitar 14 mil suicídios por ano e o adoecimento de mais de 28 milhões de pessoas com depressão. "A saúde mental é o santo Graal do século 21", pressente Orsi.

ONDE PROCURAR AJUDA?

Rede de Atenção Psicossocial
Mapa mostra as unidades da rede habilitada pelo Ministério da Saúde até set.2020

Mapa Saúde Mental
Site reúne diversos tipos de atendimento: www.mapasaudemental.com.br

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Voluntários atendem ligações gratuitas 24 horas por dia no número 188: www.cvv.org.br

O QUE É A SÉRIE BRASIL NO DIVÃ

Depressão, ansiedade, burnout, esquizofrenia, suicídio: a explosão dos transtornos mentais foi debatida durante mais de dois anos de pandemia, mas pouco se aprofundou sobre o nosso sistema público de saúde mental, que passa por uma grande reforma psiquiátrica há mais de 20 anos. A série Brasil no Divã discutiu o tamanho do problema, a capacidade do SUS, o fim dos manicômios, mitos e preconceitos que rodeiam o assunto e as saídas possíveis.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.