Médicos e entidades dizem que vão manter prescrição de canabidiol apesar de veto do CFM

Resolução do Conselho Federal de Medicina tornou mais restritivo o uso de Cannabis medicinal

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São Paulo

Fundadora da Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal), a advogada Margarete Brito foi nesta segunda (17) às redes sociais da entidade a fim de tranquilizar famílias e pacientes que se tratam com canabidiol (CBD). O motivo da preocupação é a resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que tornou ainda mais restritiva a indicação da Cannabis medicinal em relação à norma anterior, de 2014.

"Estou aqui para dizer que isso não vai afetar a distribuição dos óleos da Apepi nem os agendamentos com nossos médicos parceiros", afirmou Brito.

Publicada na última sexta (14), a resolução 2.324/22 restringe a prescrição do canabidiol a tratamentos de epilepsias bem específicas de crianças e adolescentes "refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa".

Há atualmente, porém, indicações de CBD e outros derivados da Cannabis para mais de 20 condições médicas, entre as quais dor crônica, fibromialgia, Parkinson, Alzheimer e depressão. A prescrição ocorre no modo "off-label" —o médico avalia o risco-benefício e assume a responsabilidade pela indicação.

Processo de fabricação de óleo à base de Cannabis - Adriano Vizoni - 26.set.2019/Folhapress

Criada em 2014, a Apepi tem 4.500 associados, dos quais 80% não são contemplados pela nova resolução do CFM, segundo a fundadora. Localizada no Rio de Janeiro, a associação obteve na Justiça, em fevereiro deste ano, salvo-conduto para plantar, manipular e fornecer extrato de Cannabis a associados. Até então, atuava em "desobediência civil", como Brito costuma dizer.

"Tudo vai continuar como sempre foi. Os médicos que prescrevem o canabidiol disseram que vão continuar prescrevendo, a Apepi vai continuar fornecendo os óleos. Trabalhamos com médicos muito corajosos, que nunca se curvaram aos absurdos do conselho e que disseram que vão continuar batendo o pé", disse a advogada à Folha.

Fundadora da Cultive - Associação de Cannabis e Saúde, Cidinha Carvalho também afirma que o trabalho será mantido. A entidade atende 200 pacientes em São Paulo e desde o ano passado tem autorização judicial para plantar maconha e produzir óleo.

"Essa é uma resolução inconstitucional, que fere o direito fundamental à saúde", disse ela, referindo-se ao artigo 196 da Constituição. "Não vamos mudar nada, até porque o CFM sempre restringiu [o acesso ao canabidiol], sempre ignorou a ciência."

Embora só autorizasse o uso da Cannabis medicinal para tratamento de epilepsia, a resolução anterior do CFM não era categórica em proibir a prescrição para outros casos. A nova norma diz que a indicação só pode ocorrer em estudos clínicos autorizados pelo sistema formado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e Conselhos de Ética em Pesquisa (CEP/Conep). Além disso, o texto de 2014 autorizava apenas psiquiatras, neurologistas e neurocirurgiões a prescrever CBD —o que foi derrubado pela nova resolução.

Advogado da Rede Reforma, que reúne profissionais do direito que atuam pela revisão da política de drogas, Emilio Figueiredo afirma que a nova resolução do CFM viola a autonomia profissional.

"O médico tem a liberdade de, junto ao seu paciente, decidir o melhor tratamento. Essa resolução viola isso. Se o Conselho Federal de Medicina ou os conselhos regionais forem para cima dos médicos com base nessa nova resolução, terá de haver uma ponderação sobre o que é mais importante, a autonomia do médico ou o controle das práticas médicas pelo CFM. Aí é difícil prever quem vai ganhar, mas a autonomia profissional do médico é um conceito reconhecido há muitos anos", disse ele.

Citando dados da Kaya Mind, empresa brasileira que faz análises do mercado de Cannabis, Figueiredo afirma que hoje há pelo menos 110 mil pacientes usando maconha medicinal com prescrição médica no país. E diz que diversos coletivos e entidades avaliam entrar com uma ação contra a resolução do CFM.

"Não vamos fazer nada de maneira açodada, porque o objetivo é sair vitorioso. Ninguém está sendo formalmente acusado por conta dessa resolução, então a gente não precisa correr com uma judicialização. Mas já começamos a nos preparar."

De acordo com o advogado, os processos do CFM contra médicos que têm relação com maconha medicinal raramente envolvem prescrição. "O que a gente vê mais é processo por causa de faltas éticas, como fazer publicidade de prescrição de Cannabis."

O casal Margarete Brito e Marcos Langenbach, fundadores da Apepi, com pés de maconha na casa deles, no Rio de Janeiro - Adriano Vizoni - 21.set.2019/Folhapress

A respeito da nova resolução, o CFM declarou, por meio de sua assessoria de imprensa, que os casos de não cumprimento são avaliados de forma individual e que entre as penalidades estão advertência e cassação do registro profissional.

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que autoriza a importação e já liberou 20 produtos à base de Cannabis em farmácias e drogarias brasileiras, disse que nada muda. "A Anvisa manterá a atual regulamentação para fins de autorização dos produtos da Cannabis para fins medicinais, independente da Resolução do CFM", diz nota da agência enviada à reportagem.

Na avaliação da neurologista Natasha Consul Sgarioni, ao restringir o uso do canabidiol a crianças e adolescentes, a resolução do CFM deixa pacientes sem opção. "Como ficam esses pacientes quando se tornarem adultos? Suspendem a medicação?", questionou.

Ela disse que continuará prescrevendo a substância. "Tenho muitos pacientes com dores crônicas, com epilepsia, em tratamento oncológico, com Parkinson, Alzheimer, que necessitam do composto. Não tenho como deixar essas pessoas desassistidas."

Assim como Sgarioni, a neurocirurgiã Patrícia Montagner considerou a resolução um retrocesso ao ignorar avanços científicos e ferir a autonomia médica na forma de tratar e julgar as opções mais convenientes para cada caso. Ela afirmou que também pretende manter as prescrições, mesmo sabendo que pode sofrer retaliação. "Não temo por fazer o que está ao meu alcance para ajudar o paciente portador de doença grave, incapacitante e refratária, dentro de todos os preceitos éticos da profissão."

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