Médicos que prescrevem tratamento com derivados de maconha viram alvo de processos

CFM demora para atualizar suas normas sobre o tema, o que abre a porta para denúncias contra os profissionais

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São Paulo

A demora do CFM (Conselho Federal de Medicina) em atualizar suas regras sobre o uso de substâncias derivadas da cânabis tem deixado médicos que receitam esse tipo de tratamento expostos a processos.

Em 2014, a Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária) autorizou pela primeira vez a importação de CBD (Canabidiol, substância não psicoativa derivada da Cannabis) para tratamento e, desde então, vem ampliando a gama de medicamentos permitidos.

Mas o CFM, que regula a atividade médica no país, não tem acompanhado a agência nessas mudanças. Na prática, isso significa que os profissionais de saúde legalmente podem receitar os tratamentos com base em substâncias da cânabis, mas correm o risco de serem processados pelos conselhos regionais de medicina por isso.

Fazendeiro segura uma folha de Cannabis em sua plantação na vila de Azila, no Marrocos
Fazendeiro segura uma folha de Cannabis em sua plantação na vila de Azila, no Marrocos - Fadel Senna/AFP

No limite, essas ações podem levar até a cassação da inscrição profissional, impedindo a pessoa de exercer a medicina no país —embora, até hoje, não exista registro de que alguém de fato tenha sido punido dessa forma.

A questão gira em torno da norma 2113 do CFM, publicada em 2014 e que classifica a Cannabis como terapia experimental.

"Como não havia estudos científicos de grande impacto que comprovassem o tratamento, o CFM se viu na obrigação de orientar os médicos", diz o neurologista Lécio Figueira Pinto, vice-presidente da Associação Brasileira de Epilepsia. "Por isso, editou a norma 2113, que depois de oito anos precisa ser atualizada."

A regra orienta o tratamento apenas em casos de epilepsia infantil refratária (que não responde ao tratamento convencional) e congênita. Também limita a prescrição a neurologistas e psiquiatras. Na prática, porém, as substâncias são indicadas por médicos de diversas especialidades e para outras finalidades não previstas, como câncer, dor crônica, e depressão.

Procurado pela reportagem, o CFM não informou o número de sindicâncias ou processos abertos devido à prescrição de Cannabis. Assim, os casos acabam sendo divulgados pelos próprios médicos, em geral nas redes sociais.

Foi o que aconteceu com Paulo Fleury, 58, especializado em medicina preventiva e social, autor de uma pesquisa sobre a eficiência da Cannabis no tratamento de crianças autistas.

"Eu estou sendo processado no Conselho Regional de Medicina em dois estados, por receitar maconha, canabinóides, THC e CBD. E por divulgar esta alternativa terapêutica para diversos problemas de saúde, em especial, para o autismo", escreveu ele.

Conhecido como Dr. Green pelos internautas, Fleury costuma fazer conferências pelo Brasil sobre a terapia canábica e defende abertamente o plantio da Cannabis para o uso medicinal.

Vitor Ceribino, advogado de Fleury, explica: "O Cremeb (Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia) abriu sindicância porque ele prescreveu Cannabis para autismo, divulgou o tratamento em redes sociais e prescreveu fora do estado de atuação".

O médico é de Minas Gerais e receitou na Bahia. Para fazer isso, precisaria de uma autorização especial temporária, que ele não tinha.

Para o advogado, essa determinação perdeu sentido depois que a telemedicina foi liberada pelo CFM. Fleury é acusado também de apologia às drogas. O conselho da Bahia diz que a investigação segue em sigilo.

A segunda denúncia contra o médico foi no conselho do Paraná, e já evoluiu para um processo. A entidade também disse que não pode dar informações sobre o caso.

Para Fleury, as atuais regras do CFM estão defasadas e não refletem mais a realidade.

Para resolver esse descompasso, o conselho realizou uma audiência pública sobre o tema e pediu que os médicos se manifestassem sobre possíveis mudanças. Mas enquanto a reformulação não for aprovada, a norma atual segue em vigor.

O CFM também afirmou que não iria se manifestar sobre o assunto e não quis detalhar quais as alterações que estão sendo analisadas.

Desde que o conselho publicou a primeira norma, há oito anos, houve um boom de estudos sobre o tema. Só na base da PubMed, plataforma que reúne pesquisas científicas publicadas, há 28 mil trabalhos sobre o assunto.

"O CFM deveria ter atualizado a norma em 2016", diz a psiquiatra Eliane Nunes, diretora da SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis).

Ela responde a uma sindicância por ter receitado óleo com THC (Tetrahidrocanabidiol, substância com efeito psicoativo derivada da maconha) para um paciente —que, logo depois, ganhou no STJ (Superior Tribunal de Justiça) o direito de cultivar a planta para produzir o próprio óleo.

O oftalmologista Renan Abdalla, 38, da clínica paranaense Renasce, é outro que responde processo por não ter a especialidade exigida para prescrever a substância.

"A denúncia aconteceu logo depois de o filho de um paciente postar nas redes sociais sobre a melhora do glaucoma do pai com a Cannabis", diz o médico. "Vivemos em insegurança jurídica, enquanto esperamos a atualização da norma, tanto para pesquisa científica como para a prática clínica."

Para Pinto, o CFM terá que ampliar o leque de doenças tratadas com Cannabis, mas é preciso alguns cuidados.

"Há pacientes que procuram o médico para conseguir uma prescrição de Cannabis e não para receber um diagnóstico, resultando em uma inversão perigosa para a saúde", diz o neurologista. "Existe uma alta demanda de pacientes e, em alguns casos, abusos na prescrição".

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