Um estudo produzido por quase 400 cientistas de 112 países e territórios procurou listar as medidas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 com o mais alto grau de consenso científico.
A metodologia, que usa uma técnica chamada Delphi (várias rodadas de questionários perante um painel de especialistas para chegar a uma decisão final), considerou as respostas de pesquisadores, líderes de governo, autoridades de saúde e ONGs para gerar uma lista de diretrizes para pôr fim à Covid.
Ao final de pelo menos três rodadas, com uma taxa de resposta de mais de 80% dos participantes, os cientistas chegaram a 41 diretrizes e 57 recomendações com um elevado grau de consenso, que podem ser usadas por governos para definir políticas públicas.
O artigo, publicado nesta quinta-feira (3) na revista científica Nature, é liderado por Jeffrey Lazarus, diretor do grupo de pesquisa em sistemas de saúde do Instituto Global de Saúde de Barcelona (ISGlobal), na Espanha. A pesquisa inclui também cientistas brasileiros, da Fiocruz Bahia, da UFBA, da Rede de Pesquisa Solidária, ligada ao departamento de ciência política da USP, e do Observatório Covid-19 BR, dentre outros.
"Apesar dos importantes avanços científicos nos últimos dois anos e meio, a resposta à Covid foi dificultada por fatores políticos, sociais e de comportamento como desinformação, hesitação vacinal, ação coordenada global ausente e a desigualdade na distribuição de insumos, vacinas e tratamentos", escreveram os autores.
Os diferentes tipos de medidas elencados foram divididos em seis categorias: sistema de saúde, prevenção, comunicação, tratamento e cuidado, desigualdades da pandemia e vacinação.
Entre as três recomendações com maior grau de consenso (100%) estão ações entre todos os membros da sociedade para controle e prevenção de epidemias, adoção de medidas em todas as esferas de governo (por exemplo, diferentes ministérios) para solucionar os principais desafios do sistema de saúde e a estratégia "vacina mais" de prevenção, em que a vacinação contra Covid é considerada uma, mas não a única, medida para acabar com a pandemia.
Demais recomendações com alto grau de consenso foram a percepção de que o vírus continua sendo um problema de saúde em muitos lugares e que a pandemia não vai acabar se não forem feitos esforços coletivos; a importância de uma comunicação direta e clara por parte das autoridades de saúde e especialistas à população; e ações de combate global à desigualdade, incluindo fornecer ferramentas aos países mais pobres para produzir e comprar vacinas e medicamentos de alta eficácia.
As recomendações citadas no artigo podem servir como base para decisões com alto grau de confiança para acabar com a Covid como uma ameaça de saúde pública global. "A pandemia da Covid ainda não acabou, apesar de esforços individuais locais para a retomada de atividades culturais, sociais, políticas, religiosas, econômicas, de saúde e de educação", lembram os autores.
Em entrevista à Folha por email, o pesquisador Jeffrey Lazarus reforçou que, no caso da Covid, as recomendações que tiveram o mais alto nível de consenso foram aquelas que buscam unir sociedade e governo, nas diferentes esferas, para tomada de decisões. "Cada setor da economia, cada comunidade, cada fé, grupo étnico, e todos nós como indivíduos temos um papel importante para acabar com a Covid, e nenhuma autoridade ou governo deve chegar lá sozinha. A cooperação é vital", disse, reforçando ainda que medidas protetoras mais acessíveis como uso de máscaras e ventilação dos espaços também são cruciais, além da vacinação.
O pesquisador lembra ainda que, após três anos, muitas pessoas podem estar cansadas, o que afeta a confiança nas informações sobre o coronavírus. "Nossa falha em comunicar de maneira adequada, o que foi também afetado pelos esforços muito mais intensos de alguns canais negacionistas, especialmente nas mídias sociais, levou também a uma descrença do público que é preciso recuperar", disse.
"Nosso estudo é, no final das contas, uma 'chamada para ação' dos diferentes setores. A pandemia não acabou. Nós precisamos estar melhor preparados, ou a ameaça de saúde pública global não vai acabar", completa.
A crise sanitária já provocou mais de 630 milhões de infecções globais, com 6,5 milhões de mortes, embora esses números muito provavelmente sejam subnotificados.
Segundo Maurício Barreto, epidemiologista e professor da UFBA e um dos autores, o estudo deve ser lido como um conjunto dessas decisões finais, podendo ser consultado por um político que esteja interessado em adotar alguma estratégia. "O escopo da pesquisa é a formação de consensos, ninguém está propondo uma nova tecnologia para combater o coronavírus, mas mostrando que existem várias questões a serem tratadas. E ele pode ser usado como experiência para outras doenças que possam surgir", completa.
Para chegar ao alto nível de consenso científico, o estudo contou, inicialmente, por quatro cientistas do ISGlobal, que coordenaram o estudo. A partir daí foram escolhidos 40 pesquisadores para atuar na formulação das perguntas. Estes também foram responsáveis por indicar outros colegas e especialistas de diversos países. No final, 386 cientistas, autoridades, membros de ONGs ou líderes em saúde foram selecionados, com mais da metade sendo de países de baixa e média renda (195 ou 51%).
De acordo com Barreto, a representatividade na pesquisa era importante pois quanto maior a diversidade dos participantes, maior pode ser a divergência em relação a uma ou outra medida.
"É claro que existem questões em que o consenso não é questionado, como a vacina, mas outros pontos podem ter um menor ou maior nível de consenso, por exemplo em relação ao financiamento para produzir as vacinas. A técnica [Delphi] procura unir especialistas que têm conhecimento sobre o tema mas que representam diversos interesses, de diferentes regiões do mundo, para chegar a um consenso", explica.
A análise da pesquisa ocorreu por meio de questionários, que passaram por pelo menos três ciclos de respostas. No primeiro deles, os cientistas colheram informações demográficas dos participantes e produziram 42 declarações. Mais de 1.400 comentários nos textos foram considerados e analisados segundo o conteúdo.
No segundo ciclo, 328 participantes responderam e revisaram 43 diferentes declarações e mais 53 recomendações. Os cientistas do núcleo de coordenação do estudo avaliaram então os principais pontos de divergência nos dois primeiros ciclos.
Por fim, cerca de 80% dos membros do painel de especialistas chegaram às principais diretrizes e recomendações finais. A maior parte das declarações teve um alto grau de concordância (entre 90% e 100%).
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