Descrição de chapéu yanomami

Mercúrio do garimpo é 'ponta do iceberg' na saúde indígena, afirma pesquisador

Além da contaminação, há problemas como obesidade, DSTs e leishmaniose

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São Paulo

A contaminação por mercúrio em terras indígenas representa uma parte dos problemas ocasionados pela presença de garimpeiros. "É a ponta do iceberg", diz o médico Paulo Cesar Basta, que há décadas estuda a saúde dos povos originários.

Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, ele afirma que a entrada dos garimpeiros é seguida por uma série de ações desestruturantes. Em conjunto, essas medidas desafiam os profissionais de saúde e demandam ações integradas.

"Só o Ministério da Saúde, o da Justiça ou o dos Povos Indígenas não vão resolver. É necessário o desenvolvimento de políticas públicas e intervenções interministeriais", afirmar Basta, que começou a atuar com os yanomamis em 1998.

Equipe do Ibama chega de helicóptero para destruir garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami - Lalo de Almeida - 11.fev.2023/Folhapress

Ele explica que, após a chegada ao território, os garimpeiros provocam a derrubada da cobertura vegetal e a mudança nos cursos d’água, além de abrirem grandes cavas que criam condições apropriadas para a reprodução de mosquitos. Os insetos levam ao aumento não apenas de casos de malária, mas de leishmaniose visceral e tegumentar.

O processo de desmatamento também afugenta a caça. Mamíferos maiores, como a anta e o porco do mato, quando não são abatidos pelos próprios garimpeiros, afastam-se. A devastação diminui ainda as áreas em que as comunidades podem fazer suas roças e elimina uma série de plantas que são consideradas medicinais.

"Geralmente, o garimpo entra dessa forma mais truculenta e depois vai lançando mão de estratégias de cooptação de homens jovens com a promessa de enriquecimento e acesso a bens e equipamentos que vêm da cidade. À medida que o jovem, que é forte, guerreiro, sai da comunidade, sua família fica vulnerável e há conflitos internos porque os mais velhos são contrários ao garimpo", relata o pesquisador.

A saída dos homens tem impacto direto na segurança alimentar, já que há uma divisão tradicional do trabalho. "A mulher fica responsável pelo gerenciamento da roça, que é basicamente composta de elementos que têm carboidratos, e cabe ao homem sair para pescar, caçar e trazer a proteína para alimentar sua família", conta o médico.

A mudança na dieta é agravada por outro método empregado pelos garimpeiros: a distribuição de cestas básicas, com produtos ricos em gordura, sal e açúcar. Elas alteram os hábitos alimentares e favorecem uma dupla carga de desvios nutricionais. De um lado, crianças e idosos com desnutrição. Do outro, adultos jovens com sobrepeso, hipertensão e diabetes.

Estudo realizado em 2018 e 2019 pelo grupo de Basta em duas regiões da terra yanomami —Awaris, no extremo norte de Roraima, e Maturacá, no Amazonas— mostrou que 80% de 350 crianças avaliadas tinham déficit de estatura para a idade, 50%, déficit de peso para a idade e 70%, anemia por desnutrição aguda.

Os cientistas decidiram então atacar uma das frentes do problema e tentar prover água potável. "Voltamos ao território neste ano e coletamos amostras de água e de sedimento dos rios. Estamos fazendo a análise dos contaminantes químicos e microbiológicos para montar, junto com a comunidade, um sistema de abastecimento e reduzir os casos de diarreia, desidratação e desnutrição."

Além disso, lembra Basta, há a questão da violência sexual, levando ao aumento de doenças sexualmente transmissíveis e da sífilis gestacional.

"Na ponta do iceberg, está o mercúrio usado no garimpo, que vai contaminar o solo, o leito dos rios, ingressar na cadeia alimentar e chegar até o ser humano, causando lesões nos tecidos", diz o médico.

Em adultos, os sinais mais comuns de contaminação por mercúrio envolvem dor de cabeça crônica, zumbido no ouvido, sensação de gosto metálico permanente na boca, alterações na visão, insônia, irritabilidade, tremores das extremidades, diminuição da sensibilidade dos pés e das mãos.

À medida que a contaminação vai se instalando, os sintomas se agravam. Há problemas de memória, os tremores se intensificam, a pessoa perde a força dos membros e tem dificuldade de caminhar.

Paulo Basta

Médico e pesquisador da Fiocruz

Em gestantes e crianças a situação é ainda mais delicada. O mercúrio tem a capacidade de ultrapassar a barreira placentária e chegar ao feto, afetando o desenvolvimento do sistema nervoso central. A contaminação pode provocar abortos de repetição e, em caso de nascimento, causar deformidades, paralisia cerebral e atraso no desenvolvimento.

"A criança nasce aparentemente bem, só que aos seis meses não sustenta a cabecinha, não consegue sentar. Ela demora para sentar, engatinhar, ficar de pé, dar os primeiros passos, falar. Ela não brinca como as outras crianças, tem dificuldade de aprendizado, e são efeitos da exposição crônica ao mercúrio no período pré-natal", diz Basta.

"Há estimativas de que, para cada micrograma de mercúrio detectado numa amostra de cabelo da mãe, a criança perde 0,18 ponto no QI (quociente de inteligência)", complementa o médico.

"Com a saúde neurológica comprometida, essas crianças podem não conseguir atingir postos de destaque na sociedade na vida adulta para quebrar o ciclo de pobreza. Isso vai aprofundar a desigualdade social e o colonialismo estrutural instalado há séculos".

Para ele, a situação requer que a sociedade reconheça que o conhecimento ancestral dos indígenas é essencial para manter a floresta de pé e que esses territórios têm de ser respeitados. O governo, por sua vez, precisa intensificar políticas de inclusão para que mais indígenas ocupem vagas em universidades e postos no Legislativo e no Executivo; garantir a soberania do território e prover serviços essenciais.

"É necessário haver água potável, manejo de resíduos e acesso a serviços de saúde bem estruturados, com equipamentos e profissionais de nível superior competentes, preferencialmente fixados por meio de concursos públicos", afirma o pesquisador.

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