Descrição de chapéu maternidade

Alta de mortes maternas é marcada por iniquidades raciais e regionais

Acesso ao pré-natal adequado, que pode prevenir complicações na gestação, é maior entre as brancas em comparação às negras e indígenas

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Boa Vista (RR)

A série de reportagens sobre mortalidade materna é uma parceria com o Pulitzer Center

Mesmo com uma política pública voltada à saúde maternoinfantil há mais de uma década, o Brasil não conseguiu reduzir as iniquidades raciais e regionais associadas às mortes maternas, que foram agravadas na pandemia de Covid-19.

Dados preliminares mostram que em 2019 e 2021, a RMM (razão de mortalidade materna) teve aumento em todos os grupos, inclusive entre as mulheres brancas, que, historicamente, são menos afetadas em comparação às pretas, às pardas e às indígenas.

Indígena gestante, vestindo blusa vermelha e calça azul, segura a barriga, enquanto espera por atendimento de pré-natal em posto de saúde em Boa Vista, capital de Roraima
Na 31ª semanada de gestação, a indígena Gennis, 22, da Venezuela, espera pela primeira consulta de pré-natal em posto de saúde de Boa Vista, em Roraima - Henrique Santana/Folhapress

Análise da Vital Strategies, com base em sistemas de informação do Ministério da Saúde, revela que, entre 2018 e 2021, a RMM entre brancas passou de 49,9 para 118,6 mortes por 100 mil nascidos vivos.

A hipótese é que o aumento esteja relacionado ao colapso enfrentado por hospitais, ao negacionismo em relação às medidas preventivas e à resistência inicial na vacinação das grávidas.

No mesmo período, entre as mulheres pretas, a RMM passou de 104 para 190,8 mortes por 100 mil, a maior entre todos os grupos. Entre as pardas, foi de 55,5 para 96,5, e entre as indígenas, de 99 para 149.

"O que vemos na vigilância da morte materna é a crônica de uma morte anunciada. A gestante não é de alto risco, mas é muito pobre, tem pouco acesso ao pré-natal. Muitas vezes, no pré-natal, o médico prioriza o ultrassom e não pede um VDRL [exame que identifica a sífilis] ou exame de urina", diz a médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies.

Complicações no final da gestação, como infecção urinária, mesmo em uma gestante de baixo risco, pioram o prognóstico. "Ela procura o hospital e não se identifica o problema, ela vai a outro e outro até complicar muito e ser hospitalizada de urgência. Se não morrer, vai chegar perto. Todos os casos contam a mesma história", afirma.

O alto número de mortes maternas reflete desigualdades no acesso à saúde. Em 90% dos casos, são causas evitáveis. Por isso, é considerada uma das mais graves violações dos direitos humanos das mulheres.

O Brasil é signatário de um acordo internacional para reduzir as mortes de gestantes e puérperas até 2030 a um patamar de 30 mortes por 100 mil nascidos vivo, mas um relatório de 2019 do Ministério da Saúde mostra que, a depender do atual ritmo, há 95% de probabilidade de o país não conseguir atingir essa meta.

Um novo boletim do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) que analisa as principais causas do aumento da mortalidade materna e as propostas de enfrentamento aponta que as disparidades raciais ligadas às mortes já começam no pré-natal.

No primeiro ano da pandemia, por exemplo, o número de gestantes brancas que realizaram um pré-natal adequado caiu 0,54%. Entre as negras, a queda foi de 1,44%. É considerado um pré-natal inadequado quando a assistência médica começa apenas após o terceiro mês de gestação ou que foram realizadas menos de seis consultas durante toda a gravidez.

"Houve piora do indicador de morte materna para todas as mulheres, mas, para as mulheres negras, a piora foi mais intensa. Essa diferença de acesso ao pré-natal entre brancas e negras vinha se reduzindo, mas com a pandemia tudo piorou. É urgente que haja políticas de fortalecimento da atenção primária e de ações voltadas ao cuidado das mães e mulheres negras", diz Rony Coelho, pesquisador do Ieps.

Segundo ele, as desigualdades raciais também marcam as diferentes regiões do Brasil e são anteriores à pandemia. Em 2014, por exemplo, 52,9% das gestantes pretas do Norte do país não tiveram acesso adequado ao pré-natal, contra 21,7% entre mulheres brancas do Sudeste.

Gestante com blusa vermelha, usando máscara de proteção, é examinada por médico de família em Unidade Básica de Saúde da Ilha do Combu, em Belém (PA)
Amanda Juliana Machado, 24, passa por consulta de pré-natal com médico de família em UBS da Ilha do Combu, em Belém (PA) - Henrique Santana/Folhapress

Uma outra pesquisa realizada na UFBA (Universidade Federal da Bahia) mostra que a cor da pele também interfere no acompanhamento de adolescentes grávidas. Enquanto 64% das meninas brancas têm acesso adequado ao exame pré-natal, esse índice cai para 50% entre as meninas negras e para 30% entre as indígenas, segundo dados preliminares da pesquisa sobre gravidez e maternidade na adolescência.

De acordo com Agatha Eleone, analista de políticas públicas e uma das autoras do documento do Ieps, embora exista uma política pública voltada desde 2011 para apoiar e financia ações de atendimento às gestantes e bebês (Rede Cegonha), isso não foi suficiente para resolver as elevadas taxas de mortalidade materna e nem as disparidades regionais.

Ano passado, a gestão Jair Bolsonaro (PL) extinguiu a Rede Cegonha e a substituiu por uma outra rede de atenção maternoinfantil (Rami). Esta, por sua vez, já foi extinta pela gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no início deste ano e houve a retomada da Rede Cegonha.

No final de 2022, havia previsão de corte de R$ 18 milhões no orçamento de 2023 para implementação de políticas maternoinfantis. Mas, segundo o Ministério da Saúde, ainda não há uma definição de quanto será de fato o orçamento para a área neste ano.

Uma das principais complicações obstétricas que levam à morte materna é a hipertensão (pré-eclâmpsia e eclâmpsia), que aumentou a sua participação nas mortes. Em 2014, a razão foi de 25,2 por mil partos. Em 2021, subiu para 33,3 (alta de 34%).

"A melhor solução para reduzir essas mortes é um investimento na atenção primária, um acompanhamento eficiente no pré-natal", afirma Agatha Eleone.

O cumprimento de metas de realização das seis consultas de pré-natal está atrelado à parte do financiamento da atenção primária, dentro do Programa Previne Brasil, mas 35% dos municípios brasileiros não atingiram esse objetivo em 2022, segundo dados da Impulso Gov.

Boa Vista, em Roraima, foi um deles. Nos dois primeiros anos da pandemia, a cidade também teve a maior taxa de letalidade de gestantes e puérperas hospitalizadas por Covid (47,7%) entre as capitais brasileiras, segundo análise do OOBr (Observatório Obstétrico Brasileiro). Palmas, no Tocantins, aparece em segundo lugar, com 31%, e Rio Branco, no Acre, tem 29,4%. A média do país como um todo foi de 9,4%.

"Essas gestantes passavam pelo pronto-atendimento e vinham direto para a UTI em estado muito crítico. Estávamos preparados? Não, não estávamos. A maternidade não tem UTI e houve momentos [no HGR, Hospital Geral de Roraima] de olharmos para os pacientes, ver a superlotação e dizer: 'onde colocar o próximo'?, lembra Helinana Barros Machado Machado, enfermeira intensivista do HGR.

Segundo Gabrielle Almeida Rodrigues, responsável técnica de Boa Vista da área de saúde da mulher, a alta mortalidade em 2021 esteve relacionada à Covid: dos 28 óbitos registrados na capital, 21 foram por complicações da infecção.

"A gente só tem uma maternidade pública no estado, e não temos nenhuma UTI materna. Hoje, ela está funcionando de forma precária, em um local improvisado. Além de não ser um local apropriado, tem um déficit grande de profissionais. Esse é o principal entrave."

Roraima tem 15 municípios, mas só Boa Vista dispõe de uma maternidade e de um único hospital público de alta complexidade. Todos os casos graves do interior são encaminhados para a capital, que se somam aos das gestantes venezuelanas e indígenas. O estado liderou as mortes maternas no país em 2021, com 282 óbitos por 100 mil nascidos vivos, patamar semelhante ao de países africanos.

"A demanda vem crescendo muito com a imigração. A gente aumenta o número de profissionais, de exames, mas nunca é o suficiente", diz Rodrigues. Segundo ela, o município tem criado novas unidades básicas de saúde, ampliando as existentes, além de contratar e investir em qualificação profissional.

Na 31ª semana de gestação, a venezuelana Genny, 22, indígena da etnia warao, passou pela primeira consulta de pré-natal no mês passado, em uma UBS em Boa Vista. É a sua terceira gestação, e a primeira em que é acompanhada, graças a uma parceria da UBS com o UNFPA (Fundo de Populações das Nações Unidas). "Gostei", resumiu ela ao sair da consulta e ter ouvido os batimentos cardíacos do bebê.

Em nota, a Secretaria de Saúde de Roraima disse que o Estado vem registrando um grande aumento nas demandas de atendimentos maternoinfantis e que o principal desafio do Hospital Materno-Infantil Nossa Senhora de Nazareth tem sido garantir atendimento às mulheres venezuelanas, que chegam à unidade sem acompanhamento de pré-natal e com quadro clínico de alto risco.

Em 2022, foram 7.272 atendimentos gerais a venezuelanas, com 2.329 partos. Ao todo, a maternidade realiza em torno de 50 mil partos por ano.

A secretaria diz ainda que as obras da maternidade estão em fase de conclusão e que há projetos de construção de uma unidade na zona oeste de Boa Vista, a mais populosa da capital, além da ampliação do Hospital Délio de Oliveira Tupinambá, em Pacaraima, na fronteira com a Venezuela.

O secretário Nésio Fernandes, secretário de atenção primária do Ministério da Saúde, afirma que a meta de reduzir as mortes maternas até 2030 é factível de ser alcançada desde que os investimentos na rede maternoinfantil aconteçam em um curto espaço de tempo.

"Todos os diagnósticos já foram feitos. Agora depende de uma carteira de decisões estruturantes que levem investimentos às regiões de saúde. Não adianta colocar mais um enfermeiro e um médico de família nesses municípios, só isso não resolve."

Segundo ele, as condições que levam às mortes maternas vão muito além de ações que podem ser executadas na atenção primária. "Exigem uma estrutura hospitalar, com capilaridade de leitos obstétricos, UTIs obstétricas e neonatais em todo o país."

Fernandes afirma que, neste primeiro semestre, a gestão federal está desenvolvendo um ciclo de planejamento estratégico e intersetorial, para a definição de alocação de recursos financeiros.

Mas como isso vai acontecer na prática, as mudanças na Rede Cegonha e os valores envolvidos só devem ser anunciados no segundo semestre, segundo o secretário.

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