O que sabemos e ainda não sabemos sobre as origens da Covid

Agências de inteligência dos EUA se dividem entre teorias de que o Sars-Cov-2 teria escapado de laboratório chinês ou sido transmitido por animal

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Sheryl Gay Stolberg Benjamin Muller
Washington | The New York Times

A conclusão do Departamento de Energia dos Estados Unidos, com "baixa confiança", de que um vazamento acidental de laboratório na China provavelmente causou a pandemia de coronavírus renovou as indagações sobre o que provocou a pior crise de saúde pública em um século, e se o vírus no centro dela estaria de alguma forma ligado à pesquisa científica.

Cientistas e agências de espionagem se empenharam em responder essa pergunta, mas é difícil encontrar evidências conclusivas. As agências de inteligência do país estão divididas e nenhuma delas mudou suas conclusões depois de ver as descobertas do Departamento de Energia, disseram autoridades.

Cientistas que estudaram a genética do coronavírus e os padrões pelos quais ele se espalhou dizem que a causa mais provável é que o vírus saltou de mamíferos vivos para humanos —fenômeno científico conhecido como "transbordamento zoonótico"— no Mercado Atacadista de Pescados Huanan, em Wuhan, na China, cidade onde surgiram os primeiros casos de Covid-19 no final de 2019.

Imagem de janeiro de 2020 mostra um segurança na entrada do Mercado de Pescados de Huanan, em Wuhan (CHN), onde cientistas acreditam ter surgido a pandemia de Covid-19
Imagem de janeiro de 2020 mostra um segurança na entrada do Mercado de Pescados de Huanan, em Wuhan (CHN), onde cientistas acreditam ter surgido a pandemia de Covid-19 - Hector Retamal - 24.jan.20/AFP

Mas outros cientistas dizem que há evidências, embora circunstanciais, de que o vírus veio de um laboratório, possivelmente do Instituto de Virologia de Wuhan, que tinha profunda expertise na pesquisa de coronavírus. Acidentes de laboratório acontecem; em 2014, após acidentes envolvendo gripe aviária e carbúnculo, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) reforçaram suas práticas de biossegurança.

O debate tem forte peso político. A teoria do vazamento de laboratório ganhou endosso entre os republicanos na primavera de 2020, depois que o ex-presidente Donald Trump, que usou termos inflamados para culpar a China pela pandemia, aderiu à ideia. Muitos democratas não foram convencidos pela hipótese do vazamento de laboratório; alguns dizem acreditar na explicação das causas naturais e outros dizem que talvez nunca haja informações suficientes para se tirar uma conclusão.

As descobertas do Departamento de Energia deram um reforço aos deputados republicanos que estão investigando as origens da pandemia. Mas, fora da política, especialistas dizem que entender o que causou uma crise de saúde pública que matou quase 7 milhões de pessoas pode ajudar os pesquisadores a entender como prevenir a próxima.

Aqui está o que sabemos e não sabemos sobre as origens do coronavírus:

Por que não se sabe com certeza como a pandemia começou?

Com frequência é difícil encontrar as origens dos vírus, mas a China ampliou esse problema ao dificultar muito a obtenção de evidências.

Quando os pesquisadores chineses chegaram ao mercado de Huanan para coletar amostras, a polícia tinha fechado e desinfetado o local porque várias pessoas ligadas a ele adoeceram com o que mais tarde seria conhecido como Covid. Nenhum animal do mercado foi deixado vivo.

Alguns cientistas também acreditam que a China forneceu uma imagem incompleta dos primeiros casos de Covid. E eles temem que uma diretriz aos hospitais no início do surto para relatarem doenças especificamente ligadas ao mercado possa ter levado os médicos a ignorar outros casos sem tais vínculos, criando uma imagem tendenciosa da disseminação.

O que os cientistas fizeram para investigar?

Especialistas tentaram contornar as falhas nos dados.

Cientistas examinaram casos de pacientes hospitalizados antes do aviso para os médicos buscarem vínculos com o mercado. Eles também mapearam os locais dos primeiros casos de Covid em Wuhan —incluindo pessoas que estavam inicialmente ligadas ao mercado e outras que não estavam— e descobriram o que dizem ser sinais de que o vírus começou a se espalhar no mercado.

Alguns desses mesmos cientistas estudaram mapas de onde os investigadores encontraram vírus no mercado de Huanan, incluindo paredes, pisos e outras superfícies, e descobriram que essas amostras se agrupavam numa área onde eram vendidos animais vivos.

E análises genéticas separadas dos estágios iniciais da pandemia sugerem, segundo alguns cientistas, que o vírus contaminou pessoas que trabalhavam ou faziam compras no mercado em duas ocasiões distintas.

Outros cientistas negaram que estudos como esses possam indicar com muita confiança a origem no mercado. Eles disseram, por exemplo, que a evidência de duas contaminações separadas no mercado também pode indicar a evolução do vírus à medida que se espalha de pessoa para pessoa.

Alguns também argumentaram que, apesar de toda a atenção prestada ao Instituto de Virologia de Wuhan, não foi dada atenção suficiente a outro local de pesquisa na cidade, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Wuhan. Esse centro está muito mais próximo do mercado de Huanan.

Por que algumas pessoas suspeitam de um vazamento de laboratório?

Em outubro, membros republicanos da Comissão de Saúde do Senado dos EUA publicaram uma análise das origens da pandemia que argumentava que foi "provavelmente o resultado de um incidente relacionado à pesquisa", embora reconhecesse que a conclusão "não pretendia ser dispositiva".

O relatório destacou o que seus autores descreveram como buracos na teoria das origens naturais, assim como "problemas persistentes de biossegurança" no Instituto de Virologia de Wuhan. O relatório, no entanto, baseou-se amplamente em evidências públicas existentes, em vez de informações novas ou classificadas, e não produziu evidências para mostrar que o instituto de Wuhan armazenava algum vírus em suas coleções que pudesse ter se tornado o causador da Covid-19, com ou sem modificação científica.

A hipótese de vazamento de laboratório é reforçada, segundo o relatório, pela falta de evidências publicadas de que o vírus Sars-CoV-2, que causa a Covid-19, estivesse circulando entre animais antes da pandemia. Amostras de vírus coletadas em geladeiras, bancadas e outras superfícies no mercado de Huanan eram geneticamente semelhantes a amostras humanas, sugerindo que o vírus foi disseminado por humanos, e não por animais, afirmou.

Mas alguns especialistas disseram que a incapacidade de encontrar um animal infectado não prova nada, porque a China fechou o mercado e matou todos os seus animais antes que pudessem ser testados.

Em 2018, antes da pandemia, o instituto de Wuhan e seus parceiros —incluindo o grupo de pesquisa EcoHealth Alliance, cujo trabalho é financiado pelos Estados Unidos— buscaram financiamento do Departamento de Defesa para coletar e experimentar coronavírus com novas características que os tornariam altamente transmissíveis em humanos.

O projeto do grupo não recebeu financiamento. Mas o relatório apontou essa proposta, observando que o vírus que causa a Covid-19 tem características semelhantes às que os pesquisadores procuravam. Isso convenceu alguns cientistas da possibilidade de um vazamento de laboratório. O relatório dos senadores republicanos deduziu que o vírus poderia ter escapado, talvez infectando um pesquisador que o carregou para fora do laboratório.

Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) pagaram parte do trabalho da EcoHealth Alliance em Wuhan, mas seus funcionários disseram repetidamente que os vírus estudados com verbas dos contribuintes americanos não tinham semelhança genética com aquele que causa a Covid-19. Mas o doutor Lawrence A. Tabak, diretor interino do NIH, reconheceu durante uma recente audiência no Congresso que não sabia que outro trabalho o instituto de Wuhan estaria fazendo.

O que diz a comunidade de inteligência dos EUA?

Em maio de 2021, vários meses depois de assumir o cargo, o presidente Joe Biden ordenou que os órgãos de inteligência do país conduzissem um inquérito de 90 dias sobre a causa da pandemia. As descobertas dessa revisão foram divulgadas em agosto de 2021 e confirmaram o que as agências haviam dito anteriormente: tanto a teoria das origens naturais quanto a teoria do vazamento de laboratório eram plausíveis.

Em comunicado na época, Biden pediu à China que fosse mais transparente sobre o que levou ao surgimento do vírus no país no final de 2019.

A nova conclusão do Departamento de Energia é baseada em inteligência que não está disponível publicamente, por isso é difícil saber o que explica a mudança. Mas o uso pelo departamento da frase "baixa confiança" indica que seu nível de certeza não é alto. O FBI, no entanto, concluiu com "confiança moderada" que o vírus surgiu acidentalmente de um laboratório.

Quatro outras agências de inteligência e o Conselho Nacional de Inteligência concluíram, com baixa confiança, que o vírus provavelmente surgiu por transmissão natural. A CIA, principal agência de espionagem dos EUA, não se posicionou e continua indecisa.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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