Crianças munduruku podem estar contaminadas por mercúrio

Indígenas nascem com malformações e apresentam atrasos no desenvolvimento, e garimpo ilegal é a principal suspeita

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Daniel Camargos Julia Dolce
Repórter Brasil

Um garoto munduruku, de 11 anos, não anda nem fala e é carregado pelo pai, que esculpiu uma poltrona em madeira pela falta de cadeira de rodas. Os irmãos deles, com idades entre 5 e 12 anos, também não andam, nem falam. Seus braços e pernas são atrofiados e os joelhos, inchados e com arranhões, de tanto se arrastarem no chão.

O povo munduruku busca há anos explicação para um fenômeno que faz das aldeias habitadas pela etnia, no Pará, as que mais solicitam cadeira de rodas, em comparação a outros povos indígenas. Além de crianças nascidas com malformações, adultos estão cegos e relatam tremores e fraqueza.

"Isso é provocado pelo mercúrio", diz a liderança Bruno Kaba, ecoando as suspeitas de caciques e profissionais de saúde ouvidos pela Repórter Brasil.

A contaminação dos munduruku por mercúrio é investigada há mais de uma década e se deve às dezenas de garimpos ilegais de ouro espalhados pelo território. A invasão teve um primeiro pico nos anos 1980, explodiu a partir de 2016 e não encontrou resistência na gestão de Jair Bolsonaro (PL).

Pés de menino de 11 anos
Na aldeia Pombal no Alto Tapajós, no Pará, pés de menino munduruku de 11 anos que usa cadeira de madeira construida pelo pai porque é deficiente - Fernando Martinho/Repórter Brasil

Usado para separar o ouro de impurezas, o mercúrio é descartado sem cuidado ambiental. A contaminação ocorre pelo consumo de peixes, base da alimentação munduruku. Em gestantes, o mercúrio ultrapassa a placenta e causa danos irreversíveis nos bebês, explica o médico e pesquisador Paulo Basta, da Fiocruz. "Por que esse fenômeno está acontecendo com tanta intensidade aqui na região do rio Tapajós? É evidente que o garimpo tem provocado alterações importantes na saúde."

Estudos da Fiocruz já revelaram que indígenas e peixes estão contaminados acima de limites aceitáveis. Nos próximos três anos, o grupo coordenado por Basta vai acompanhar 250 gestantes e recém-nascidos para avaliar os efeitos da contaminação no desenvolvimento infantil.

O tempo dos munduruku, contudo, é mais urgente. Eles não podem esperar enquanto as crianças adoecem com a sanha de ouro. O território é o segundo mais afetado pelo garimpo ilegal, atrás da TI Kayapó e à frente da TI Yanomami.

Com autorização de lideranças munduruku, a Repórter Brasil percorreu os rios Kabitutu, Kadiriri e Tapajós para entrevistar indígenas adoecidos e familiares. O nome das crianças foi alterado para preservar suas identidades. A cada desembarque, chamou atenção a quantidade de pessoas com dificuldades neuromotoras em pequenas aldeias.

"Ele começou a chorar e não levantou mais, contraindo mãos e pernas", conta Josiel Poxo sobre o filho, de oito anos. O menino chegou a ficar três meses deitado. "Hoje ele não escreve, nem fala. Até brinca, mas cai."

As traduções são feitas por jovens documentaristas que usam vídeos para denunciar os invasores. Elas estão produzindo um documentário sobre o mercúrio intitulado "Awaydip Tip Imutaxipi" (a floresta doente).

As equipes de saúde perceberam o aumento de casos a partir de 2009, quando uma recém-nascida morreu com características similares à doença de minamata, segundo uma profissional que pede para não ser identificada. Essa enfermidade remete ao desastre de Minamata, cidade japonesa onde milhares de pessoas foram envenenadas após o descarte irregular do contaminante por mais de 20 anos. O episódio levou à promulgação da Convenção de Minamata, da qual o Brasil é signatário.

Segundo a profissional, o distrito sanitário indígena (DSEI) Rio Tapajós, no qual estão as terras munduruku, é recordista em solicitação de cadeiras de rodas, a maioria para crianças. Procurado, o Ministério da Saúde não comentou a informação.

Para o único dos seis filhos de Valdenilson Oyoy que nasceu com malformação congênita a cadeira não chegou. Ele se banhava no Tapajós quando a reportagem atracou na aldeia Pombal. Para sair da água, a criança estende os braços e o pai o coloca em uma cadeira adaptada.

Na aldeia Curimã, três dos quatro filhos de Clebentino Poxo e Dulcinéia Saw nasceram com malformações. Um delas tem dificuldade para sustentar o pescoço. Outro tem os dedos da mão contraídos e um terceiro, os pés atrofiados. Sem cadeiras de rodas, eles rastejam no chão quando não podem ser carregados pelos pais ou pelo irmão, de dez anos, que é cego de um olho.

A exposição ao mercúrio pode afetar em qualquer idade. Na aldeia Karo Muybu, as irmãs Margarete, 48, e Olivia Karo, 40, perderam a visão na infância. "No começo era uma dor que parecia óleo de cozinha no olho", diz Margarete.

Nos adultos, o mercúrio se deposita principalmente no lóbulo occipital, responsável pela visão. Seu alvo mais comum é o sistema nervoso central. Além de afetar a visão, pode causar dores crônicas de cabeça, tremores, zumbido nos ouvidos e gosto metálico na boca, explica Basta. Pessoas contaminadas perdem a força em pés e mãos.

Luiza Kirixi, 26, não consegue segurar o choro ao contar como pernas e braços fraquejaram. Começou há quatro anos, quando ela caiu ao carregar um saco de mandioca. A dor tomou as duas pernas e agora afeta as mãos, retorcidas. "Já senti tanta dor que pensei que fosse o fim."

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que faz a vigilância de populações expostas ao mercúrio, mas não detalhou as ações, nem respondeu sobre as crianças sem cadeiras de rodas. A Funai disse que serão realizadas ações para retirada de garimpeiros das terras Munduruku (leia a íntegra dos posicionamentos).

Pelo rio Kabitutu, um pedágio improvisado chega a cobrar R$ 6.000 de garimpeiros que querem cruzar o trecho com uma escavadeira. A placa indica a conivência de alguns indígenas, mas grande parte dos munduruku resiste ao garimpo. Pelo menos 18 são ameaçados e estão em programas de proteção. São caciques, guerreiros e, sobretudo, mulheres.

Maria Leusa Kaba Munduruku é uma delas. Ela teve a casa e a sede da associação que coordena, a Wakaborun, queimadas pelos invasores. "Quem resiste perde a liberdade. Mas a gente se mantém firme".

Leusa tem um sobrinho de quatro anos que não anda, nem fala. Suspeita-se que seja mais uma vítima do mercúrio. "O que está em jogo é o futuro dos meus filhos e netos. Um futuro sem ganância e sem doença."

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