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Desigualdade no acesso a consultas e cuidadores desafia envelhecimento no Brasil

Estudo aponta falta de políticas públicas para idosos, que em 2031 devem superar percentualmente a taxa de crianças

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São Paulo

Idosos com 80 anos ou mais, com maior renda, relatam ter uma saúde melhor do que aqueles mais pobres, de dez a 15 anos mais novos. No primeiro grupo, 52% em média avaliam o estado de saúde como bom ou muito bom. Já no segundo, entre 65 a 69 anos, essa taxa variou entre 35% e 40%.

A constatação vem de um novo estudo do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), que analisou o impacto do envelhecimento populacional no sistema público de saúde e na sociedade em geral a partir de dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e da PNS (Pesquisa Nacional de Saúde), entre outras.

As desigualdades também ficam evidentes no acesso aos serviços de saúde. Pessoas entre 60 e 64 anos com renda mais elevada tiveram mais chances de ter feito uma consulta médica do último ano em comparação aos idosos de 80 anos ou mais de menor renda, segundo o estudo.

Idoso é vacinado contra a Covid no Parque da Cidade, região central de Brasília - Pedro Ladeira - 2.fev.2021/Folhapress

"Se o idoso tem uma fratura de fêmur, por exemplo, o protocolo é operar e sair do hospital em três dias. Mas em muitos serviços públicos em 14 dias ainda nem chegou a prótese, o que aumenta as chances de infecção e de morte. O mesmo ocorre com o câncer. Temos pacientes que morrem antes do diagnóstico", relata a geriatra Maísa Kairalla, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

A médica, que atende tanto no Hospital Albert Einstein (SP) quanto no ambulatório público da Unifesp, presencia essas desigualdades diariamente. "Eu falo pro paciente [do SUS]: 'O senhor precisa comer proteína'. E ele me responde: 'Eu não tenho como'. Ele não tem dentição, não tem suporte social de cuidador. Vai comer o quê? Miojo, porque é mais fácil, porque tá sozinho. Às vezes não é só a falta de dinheiro, é o cuidado em si", explica a geriatra.

Segundo Matías Mrejen, pesquisador sênior do Ieps e um dos autores do estudo, esses desafios devem se acentuar nos próximos anos no país. Em 2031, o percentual de idosos deverá superar a taxa de crianças, e a sua participação na população total vai aumentar numa velocidade muito maior do que a observada em outros países.

A França, por exemplo, viu a sua proporção de idosos dobrar de 10% para 20% em 140 anos, o Reino Unido, em 80 anos, e os Estados Unidos, em 75 anos. Já no Brasil isso deverá ocorrer em apenas 25 anos, entre 2010 e 2035. Esse período é mais curto do que o da Índia (40) e similar ao da China (25) e do conjunto da América Latina (30).

Os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que já houve um aumento na taxa de domicílios com idosos na última década, de 19,9%, em 1998, para 23,4% em 2019. Com o avançar da idade, aumenta também o percentual daqueles precisam de ajuda nas atividades do dia a dia.

Enquanto cerca de um quarto de idosos de até 69 anos se declara com algum grau de dificuldade para realizar atividades diárias, na faixa etária seguinte (de 75 a 79 anos), a taxa é de 41%. Entre os com 80 anos ou mais, salta para 57%.

"No Brasil, esse envelhecimento é muito desigual e vai trazer muitos desafios para o sistema de saúde e para as famílias. Os idosos vão precisar de ajuda para comer, tomar banho e outras atividades do dia a dia e, na maioria dos casos, essa ajuda terá que ser provida pelos familiares", diz Mrejen.

De acordo com trabalho, a contratação de cuidadores só é significativa entre as famílias de maior renda. Apenas 0,4% dos idosos mais pobres conta com esses profissionais. Já entre aqueles com renda mais elevada, esses percentuais variam entre 27% e 69%.

"Isso pode prejudicar principalmente a posição das mulheres no mercado de trabalho. Elas têm maior probabilidade de realizar tarefas de cuidado pessoal no domicílio quando há idosos com limitações funcionais", afirma Letícia Nunes, professora-assistente do Insper e coautora do estudo.

O país também não está preparado para atender as demandas de uma população envelhecida em relação aos recursos humanos. Apenas de 0,5% dos formandos em residência médica concluiu o curso de geriatria, segundo o Demografia Médica Brasileira 2023.

Ao mesmo tempo, a pediatria foi a opção de 9,8% dos residentes, a obstetrícia e ginecologia, de 7,5%, e as áreas da dermatologia e da cirurgia plástica, de 2,3% e 1,6%, respectivamente.

"Além de uma considerável discrepância com as nossas necessidades atuais, esse perfil de novos especialistas também não parece ter se modificado ao longo do tempo", observa Nunes, do Insper.

Para o médico e gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade, mais geriatras são necessários, porém, a principal medida para enfrentar esses desafios do envelhecimento populacional é "dar um banho gerontológico" na formação dos profissionais de saúde.

"Não precisamos apenas de mais médicos. Precisamos de mais enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, de fonoaudiólogos, todos precisam aprender sobre envelhecimento. Cada vez mais os pacientes serão pessoas mais velhas e terão mais riscos associados a essa condição."

Outro sinal de despreparo do sistema de saúde é a pouca na oferta de leitos de longa permanência, que tratam pacientes que não estão mais em condições graves, mas que apresentam alta dependência e necessitam de reabilitação —em grande parte, são idosos.

Segundo dados do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), na última década houve queda na oferta desses leitos. Em 2010 havia no Brasil 0,6 leito crônico ou de reabilitação para cada mil idosos. Em 2021, a proporção estava em 0,4 para cada mil.

A falta desses leitos faz com que pacientes crônicos com alta dependência permaneçam por longos períodos em salas de urgência, leitos de internação geral e até de UTIs, quando poderiam estar em outros serviços desenhados para esse fim. "Isso gera elevados custos hospitalares para o sistema e necessidades adicionais de financiamento", diz Nunes.

Esses leitos de longa permanência estão em apenas 36% dos municípios brasileiros, e a maior parte se concentra em estabelecimentos privados.

"Os dados sugerem que o Brasil não está preparado para enfrentar os desafios do acelerado envelhecimento da sua população e necessita de uma atuação intersetorial com as políticas de assistência social, previdência social, saúde e cuidado com a pessoa idosa", diz Mrejen, do Ieps.

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