70% dos moradores de favelas relatam dificuldade para diagnóstico do câncer no SUS

Pesquisa inédita mostra que, além da falta de médicos e da demora de exames, persistem desinformações sobre a doença

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São Paulo

Sete em cada dez pessoas que vivem em favelas no Brasil relatam dificuldades para a prevenção e o diagnóstico do câncer, entre elas a demora para consultas e exames no SUS.

A avaliação é de uma pesquisa do Instituto Oncoguia, realizada pelo Datafavela (Instituto Locomotiva), lançada nesta terça (9) no 13º Fórum Nacional Oncoguia, que acontece em Brasília.

O levantamento ouviu um total de 2.963 pessoas de favelas de todo o país de forma online e via questionário de autopreenchimento, com margem de erro de 1,8 ponto percentual.

Equipe do Samu examina moradora da favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo - Lalo de Almeida - 1º.mai.2020/Folhapress

Os entrevistados pertencem a um painel construído com o apoio da Cufa (Central Única das Favelas), que conta com 850 mil respondentes e, segundo o instituto, garantem a representatividade dessa população.

Segundo Luciana Holtz, presidente e fundadora do Oncoguia, a pesquisa é pioneira ao dar voz e visibilidade aos desafios enfrentados por essas comunidades ao acesso à informação e aos cuidados com a saúde, em especial negros e pessoas das classes D e E, que representam 81% dos entrevistados.

"A favela é a concentração das desigualdades no Brasil. É um lugar em que o Estado não existe, que está em permanente estado de guerra", diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.

Entre os entrevistados, 85% dizem que, se tivessem mais condições financeiras, poderiam cuidar melhor da saúde, fazendo exames de rotina com maior frequência. Outros 73% declaram que até tentam cuidar da saúde, mas que enfrentam falta de médicos nos postos de saúde e demora para a realização de exames, e 41% dizem que só fazem exames quando ficam doente.

"Eu fiquei muito mexida com o dado de que 44% das pessoas cuidariam melhor da saúde se tivessem com quem deixar os filhos. As barreiras financeiras, sociais e culturais aparecem com muita ênfase. As pessoas pedem melhorias de infraestrutura de saúde, mas também há que se olhar para esse contexto de vulnerabilidade onde moram", diz Holtz.

Meirelles lembra, por exemplo, a ausência de creches nas favelas e o fato de que muitos patrões não liberam seus empregados para fazer exames de rotina ou a irem a consultas médicas.

"Isso faz com que as mães não consigam se cuidar da forma como deveriam porque não têm onde deixar os filhos. A preocupação dela é se o filho terá comida no dia seguinte. Se ela tiver que adiar o exame por isso, ela vai adiar e vai perder a vaga. Isso não acontece na classe A, que marca o exame quando quiser."

Entre as barreiras para a prevenção e o diagnóstico precoce do câncer está a desinformação, presente em 62% das respostas: 36% dos entrevistados mencionam falta de conhecimento sobre o assunto, e 28% dizem que tem medo de realizar exames de rotina (e descobrir a doença). Outros 27% dizem que "Deus é quem determina se alguém vai ou não ter câncer; prevenção e exames não mudam isso".

Também persistem mitos como o de acreditar que cozinhar no forno de micro-ondas pode causar câncer (29%), que todo câncer é hereditário ou ainda que o cigarro só causa câncer de pulmão (40%). "As campanhas de informação precisam estar conectadas como acesso. Senão não adianta nada mobilizar as pessoas para a prevenção", pontua Holtz.

Quase metade da população ouvida (49%) relata entraves para se cuidar ou para priorizar a saúde. Mais de um terço (37%), por exemplo, afirma ter dificuldade de abandonar hábitos nocivos à saúde, como fumar e beber em excesso, e perto de um quarto (23%) diz que não tem tempo para se cuidar.

São pessoas que têm que matar um leão por dia para sobreviver. Sair para fazer um diagnóstico significa perder um dia de trabalho. Isso tudo tem que ser levado em conta

Renato Meirelles

presidente do Instituto Locomotiva

De acordo com Holtz, outros estudos já demonstraram que as pessoas com menor renda e baixos níveis de escolaridade são as que mais morrem de câncer. "São os mais punidos e prejudicados." Um levantamento do Observatório da Atenção Primária de 2020 mostrou, por exemplo, que 55% das pessoas que morreram de câncer no Brasil tinham entre zero e sete anos de estudo.

Entre as ações de saúde sugeridas pelos entrevistados estão mais investimento em instituições de saúde (50%), médicos e outros profissionais disponíveis perto de casa (49%) e o acompanhamento mais frequente e contínuo dos agentes de saúde da família (42%).

"A realidade socioeconômica e cultural também pesa na hora de colocar em prática o autocuidado em saúde. Sem dinheiro para transporte, sem dispensa do trabalho, sem ter onde deixar os filhos, essas pessoas não vão conseguir se cuidar adequadamente."

Segundo Renato Meirelles, embora haja queixas em relação aos equipamentos de saúde, tudo seria muito pior se não existisse o SUS (Sistema Único de Saúde): 82% dos entrevistados usam exclusivamente a rede pública de saúde.

"Embora o câncer, como o vírus da Covid, seja transversal entre as classes econômicas, na prática, os anticorpos sociais entre os mais pobres e os mais ricos para combater isso são muito diferentes."

Ele cita, por exemplo, os "anticorpos" do acesso ao diagnóstico precoce, a especialistas e medicamentos. "O câncer não vê classe, mas o tratamento vê."

Meirelles diz que, embora os problemas enfrentados pelos moradores das favelas sejam estruturais, quem tem câncer não tem tempo para esperar a resolução deles.

Para ele, uma das alternativas a curto seriam os mutirões de exames, com garantia de continuidade do diagnóstico e tratamento. "São pessoas que têm que matar um leão por dia para sobreviver. Sair para fazer um diagnóstico significa perder um dia de trabalho. Isso tudo tem que ser levado em conta."

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