Rotina espartana faz do Quênia pátria de fundistas
Isaac Songok, 24, enxuga o suor e segue adiante sob o forte calor. O termômetro acusa pouco mais de 25ºC, mas a sensação é de temperatura bem mais elevada diante do descampado e do ar seco. Ocasionalmente, uma caminhonete passa, levantando nuvem de poeira vermelha pelo caminho dos corredores.
São pouco mais de 6h, e o treino prossegue pelas estradas de terra em Iten, vilarejo do Rift Valley (oeste do Quênia).
Veja fotos do treinamento dos atletas quenianos
Vice-campeão africano dos 5.000 m em maio --perdeu só para o recordista mundial, Kenenisa Bekele--, Songok raramente corre em um piso oficial.
"Treino sempre na terra. A pista mais próxima é em Eldoret [a 30 km de Iten], mas é difícil ir para lá", diz o queniano, pré-selecionado para Pequim.
A região de Eldoret concentra a maioria dos fundistas de elite do país, considerado a pátria das corridas de média e longa distâncias. Nenhuma nação ostenta tal domínio em percursos que variam dos 800 m em pista aos 42,195 km na rua.
"De 60 maratonas, vencemos 56 em 2007", contabiliza Isaiah Kiplagat, presidente da Federação Queniana de Atletismo.
Qual é a explicação para isso? Para o técnico Colm O'Connell, a questão é complexa. Ex-padre irlandês (como o que derrubou Vanderlei Cordeiro de Lima na maratona de Atenas-2004), radicado há 32 anos no Quênia, O'Connell acredita que não há uma razão isolada.
"Vou lhe fazer a mesma pergunta: 'Por que o Brasil é tão bom no futebol?'. Ninguém pode dizer com 100% de certeza porque um país produz atletas com uma habilidade específica", diz. "Pode ser o ambiente, a sociedade, a tradição, o clima, a alimentação... Talvez a genética. Mas acho impossível alguém dizer um dia que foi descoberto o gene da corrida."
Se houver tal achado, sem dúvida estará presente entre os kalenjins, uma das 42 tribos que convivem no Quênia em relativa harmonia --quebrada neste ano com graves conflitos após as eleições presidenciais.
Pertencem a esse grupo cerca de 80% dos atletas de elite do país. São kalenjins Robert Cheruiyot, quatro vezes vencedor da Maratona de Boston, Bernard Lagat, campeão mundial dos 1.500 m e dos 5.000 m, e Paul Tergat, o primeiro corredor a cumprir os 42,195 km em menos de 125 minutos.
"Essa tribo se originou no Sudão. Hoje também habita regiões de Tanzânia e Uganda. E, nesses países, não há atletas como os nossos", rebate Kiplagat.
Para muitos, um fator que faz o território tão especial é a altitude das cercanias de Eldoret, entre 2.100 m e 2.700 m, o que favoreceria os treinos. Países com altitudes até maiores, como Bolívia e Nepal, no entanto, jamais produziram atletas da qualidade dos quenianos.
A alimentação, por sua vez, também não apresenta características assim tão especiais.
"Aí está o nosso segredo: leite, carne e frutas", ironiza Stephen Mwaniki, guia do Museu do Atletismo do Quênia, mostrando quadro explicativo sobre o cardápio dos corredores.
Talvez o que faça da nação especial passe pelas crianças. É difundida a história de que os kalenjins percorrem, desde pequenos, largas distâncias de suas casas, em áreas rurais afastadas, até os colégios. Membros da tribo se dedicam ao cultivo de café e chá.
"Eles crescem treinando, mesmo sem saber. Não há ônibus escolar nas áreas rurais. Então, vão a pé. A criança tem que correr para não chegar atrasada à escola, onde existe inclusive punição corporal. Há muita motivação para estar lá a tempo", comenta Lisa Buster, agente de atletas quenianos.
Além disso, muitas vezes os jovens vão para casa almoçar, antes de voltar ao colégio para as aulas da tarde, percorrendo o trajeto quatro vezes ao dia.
"Corria 10 km até a escola e voltava. Sem saber, fazia uma meia-maratona por dia", diz Moses Tanui, bi da Maratona de Boston, primeiro a correr os 21,1 km em menos de uma hora.
A situação é recorrente nas biografias dos astros das pistas e ruas. Paul Tergat completava 10 km até o colégio. Catherine Ndereba, bicampeã mundial de maratona, superava outros 4 km. E, por incrível que pareça, a melhoria das condições de vida do povo causa preocupação.
"Hoje muitas crianças vão à escola em veículos do governo. Os ônibus escolares irão matar nosso atletismo no futuro", brinca Ndereba, sem deixar de expressar um certo grau de preocupação com o fato.
Forjado em provas estudantis, muito populares no país, o agora técnico Tanui, que coordena campo de treinamento em Kaptagat (perto de Eldoret), afirma que o diferencial dos quenianos é a preparação. "Aqui se treina mais duro do que em qualquer outro lugar."
Para Songok, corredor citado no início deste texto, a afirmação é verdadeira. "Corro até 100 km por semana. E minha prova são os 5.000 m. Os maratonistas, muito mais."
O'Connell diz que não basta matéria-prima de primeira. São necessários treinos duros, geralmente associados à rotina espartana da população rural.
No Quênia, há atletas de elite que vivem em alojamentos acanhados e levam vida bem simples. "Só talento não adianta. É necessário desenvolvê-lo. Esse é o meu papel", conta, mostrando que nem todo ex-padre irlandês é uma ameaça a corredores.
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