Confusão na TV e intromissão do governo marcam início do Argentino
Belgrano e Lanús encerram nesta segunda-feira a primeira rodada do Campeonato Argentino. O principal assunto esportivo no país não foi a bola rolando. A polêmica caiu sobre as transmissões das partidas e a interferência da presidente Cristina Kirchner no futebol.
Em 2009, com a ajuda de Julio Grondona [presidente da Associação de Futebol Argentino desde 1979], o governo federal comprou os direitos de mostrar todos os jogos na TV Pública. Neste ano, será dado 1,7 bilhão de pesos [cerca de R$ 515 milhões] aos clubes. O esquema, que também tem projeto para pagar as dívidas das equipes, é batizada de Futebol Para Todos.
Martin Zabala/Xinhua | ||
Cavenaghi (à direita), do River Plate, disputa a bola com Oreja, do Gimnasia, na rodada inaugural |
Rosto mais conhecido da mídia argentina, Marcelo Tinelli foi convidado para ser o novo diretor das transmissões. Empresário, dirigente esportivo e celebridade, ele é o apresentador do "Bailando por um Sonho" [a versão brasileira do programa se chama "Dança dos Famosos"]. É a única pessoa na televisão local a conseguir 40 pontos de audiência.
"É incrível que o governo destine uma cifra deste tamanho para o futebol. É uma paixão do nosso país, mas não podemos continuar colocando tanto dinheiro no esporte, enquanto muita gente continua em situação de miséria", diz o deputado de oposição Federico Pinedo, da Proposta Republicana (PRO).
Com o país mergulhado na crise e a popularidade da presidente em queda livre [tinha 36% de aprovação no final de 2013], o Futebol para Todos se tornou, mais até do que anos anteriores, assunto de Estado.
Os intervalos da TV Pública são recheados de exaltações ao governo e ataques aos oposicionistas. Integrantes das transmissões dos jogos, como Javier Vicente e Alejandro Apo, foram apelidados de "narradores militantes", pela campanha aberta que fazem do kirchenismo durante os jogos. Vicente repete exaustivamente que os últimos dez anos de governo, quando o clã dos Kirchner está no poder, é a "década ganha".
Tinelli foi convidado pelo chefe de gabinete da Presidência da República, Jorge Capitanich, a assumir o comando. A reunião aconteceu dentro da Casa Rosada, sede do governo. A ideia era mudar o estilo do Futebol para Todos. Foi o início de uma guerra que durou semanas até a intervenção da própria presidente Cristina Kirchner.
O empresário se deparou com resistência a mudanças. Especialmente da Cámpora, grupo militante de apoio ao governo, que tem como líder Máximo Kirchner, filho de Cristina.
Tinelli pediu a saída de alguns narradores e comentaristas. Apo e Vicente, entre eles. Acertou a contratação de alguns dos principais nomes da imprensa esportiva do país, como Juan Pablo Varsky, Mariano Closs e Sebastian Vignolo. Cada um receberia 220 mil pesos por mês (R$ 66 mil). Pagos pelo Estado.
Ele queria que Diego Latorre fosse o principal comentarista. A Cámpora chiou, sob o argumento de que o ex-meia do Boca Juniors não tem discurso afinado com o do governo.
O grupo político implicou até mesmo com o novo logo apresentado por Tinelli. Reclamaram que era semelhante ao da LAN, companhia aérea chinela que vive às turras com o governo argentino por ter se recusado a abandonar um hangar no Aeroparque, aeroporto próximo ao centro de Buenos Aires.
"Era uma guerra que, desde o início, Tinelli não poderia ganhar. Ele deveria saber disso. Basicamente, em uma das primeiras reuniões, ouviu que tinha o poder de sugerir, não decidir", comentou à Folha um dos assessores da Ideas der Sur, a produtora do empresário.
O Futebol para Todos é a ponta mais visível de projeto que quer trazer o esporte para o coração do governo como plataforma de poder. O Poder Público financia outros eventos, mesmo que não sejam populares. Pagou cerca de 150 milhões de pesos (R$ 45,5 mil) para organizar prova de motovelocidade, que foi apelidada jocosamente pela oposição de "Moto para Todos".
Martín Quintana-17.fev.2011/Efe |
Cristina Kirchner (centro) e Grondona (à dir.) |
Os aliados da presidente andam irritados também com Grondona e com a AFA. A entidade vendeu, por US$ 26 milhões (R$ 6,2 milhões), os direitos de retransmissão dos jogos da Copa do Mundo para a TyC. Máximo Kirchner reclamou que o governo paga caro pelo Futebol Para Todos e, por isso, deveria receber exclusividade dos jogos do Mundial. De graça.
A emissora tem participação acionária do Grupo Clarín, inimigo número um do kirchenismo. Foi da TyC que a TV Pública tirou os direitos de transmissão em 2009. Cristina Kirchner chamou a emissora de "sequestradora dos gols".
Irritado com a dificuldade nas negociações, Tinelli começou a mandar mensagens cifradas pelo Twitter. Insinuava estar tendo problemas.
A gota d'água foi o bate-boca entre o apresentador e Hebe de Bonafini, organizadora e uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio, que lutou contra o regime militar no país. "O Futebol Para Todos não existe para ganhar dinheiro e sim para fazer política. Não podemos nos esquecer disso", disse ela.
Em 2011, Bonafini esteve envolvida no "Escândalo Schoklender", quando seu amigo dos tempos de luta contra a ditadura e braço direito das Mães da Praça de Maio, Sergio Schoklender, desviou verbas do governo destinadas às construções de casas para população de baixa renda.
Na manhã de sexta-feira, dia do início do campeonato, Cristina Kirchner convocou Tinelli à Casa Rosada e o dispensou do comando do Futebol Para Todos. A transmissão continuou a mesma como nos anos anteriores, em campanha aberta pelo governo.
A confusão monopolizou as atenções de tal forma que ninguém questionou a ligação de Tinelli com o San Lorenzo. Ele acumularia o comando de uma das políticas consideradas chaves para o kirchenismo com a vice-presidência do clube que é o atual campeão nacional.
A mistura política-futebol se tornou tão forte no governo federal argentino que o nome oficial da competição é "Netos Recuperados - Copa Raúl Alfonsín".
Alfonsín foi o primeiro presidente civil após o período de sete anos de governos militares. A expressão "netos recuperados" é referência às crianças desaparecidas durante a ditadura.
Apesar do aumento anual do dinheiro do governo dado aos clubes, o passivo deles subiu 47% no último ano.
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