Os abusos sexuais cometidos pelo médico Larry Nassar contra ao menos 265 ginastas, algumas menores de idade, são consequência de uma cultura que inflige abusos físicos e psicológicos diários às atletas nos Estados Unidos.
Segundo a escritora Joan Ryan, a Federação de Ginástica dos EUA priorizou medalhas de ouro e fez vista grossa para os métodos empregados por treinadores.
"Todos os tipos de abusos na ginástica são motivados pela necessidade de se ganhar medalhas de ouro", diz a autora do best-seller "Little Girls In Pretty Boxes" (Meninas pequenas em caixas bonitas, em tradução livre).
A obra de 1995 trata de casos em que ginastas passavam fome para atingir o peso ideal. Ou eram chamadas de "preguiçosas" quando se lesionavam em treinos.
Nassar, 54, foi condenado no dia 24 de janeiro a cumprir pena de 40 a 175 anos de prisão por abusar sexualmente de atletas que ficaram sob seus cuidados. Ele já havia sido condenado em dezembro do ano passado a 60 anos de prisão por posse de pornografia infantil.
Durante o processo, ele chegou a admitir que cometeu o crime contra sete atletas. No entanto, um total de 156 mulheres –incluindo campeãs olímpicas como Aly Raisman, Jordyn Wieber, Gabby Douglas e Simone Biles– deram depoimentos de como foram abusadas, algumas de forma anônima, outras enviando cartas e vídeos para a corte, mas a maioria comparecendo pessoalmente ao tribunal para encarar Nassar.
O escândalo levou à demissão em massa da cúpula da Federação de Ginástica dos EUA.
Questionada sobre o Brasil, Ryan diz desconhecer a realidade do país, mas faz um alerta. "Se as atletas parecem ter 13 ou 14 anos, quando na verdade têm 18, então vocês também têm problemas".
Folha - Por que os casos de abuso sexual na ginástica vieram a público apenas agora?
Joan Ryan - Essa é a grande questão. Diferentemente de qualquer outro esporte, a ginástica lida com crianças, que são vulneráveis e influenciáveis. Além disso, é preciso estar concentrado por muitas horas nesse esporte. O mundo dessas atletas é a academia. Lá, elas são treinadas por homens poderosos, carismáticos e abusivos. É uma cultura em que os técnicos gritam que elas estão gordas e são preguiçosas por sentirem dores.
Como o caso de Larry Nassar se encaixa nessa cultura?
Esse médico comete violações, mas ele é legal, porque as alimenta e fica ao lado delas quando há divergências com técnicos. Quando ocorre um abuso, ele diz às garotas e aos pais que eles não sabem a diferença entre um tratamento e um abuso. Essas meninas estão tão condicionadas a aceitar o que um adulto diz sobre o que elas sentem e pensam que começam a questionar a própria realidade.
Como a lei americana protege as atletas menores de idade?
Ela não funciona. Quando escrevi meu livro, há 23 anos, pedi para que as leis trabalhistas fossem aplicadas às ginastas. Essa é a vida delas, embora muitas não estejam trabalhando da forma como definimos vínculos empregatícios. Deveria existir uma lei igual à de atores mirins de Hollywood. Estamos nos enganando ao pensar que esse esporte é um hobby para essas garotas.
O fato de os EUA serem uma potência na ginástica contribuiu para o acobertamento?
Sim. Todos os diferentes tipos de abusos na ginástica são motivados pela necessidade de se ganhar medalhas de ouro. Essa sempre foi a balança que os EUA precisaram enfrentar. Olhe para as chinesas, aquelas garotas parecem ter 10 anos. Não é um grupo muito saudável de jovens. No Leste Europeu costumava ser assim também. Os EUA vão perder se focarem na saúde das atletas. O Comitê Olímpico terá que definir qual é a prioridade: ganhar medalhas ou proteger as atletas?
Quais pressões elas sofreram para ficar em silêncio?
Primeiro, dizem a elas que tudo está bem, que o abuso é um tratamento. Em segundo lugar, se elas forem a público, a federação e os treinadores dirão: se você fizer um escândalo em cima de algo que nós dissemos que não é nada, você estará fora do time. E, por último, Nassar tinha a reputação de ser o melhor médico para ginastas no país. Então quem é você para questionar seus métodos? Dirão que você é maluca. Por isso ficaram em silêncio por tanto tempo.
Esse caso afetará a ginástica?
Creio que será semelhante ao que aconteceu com o futebol americano. Muitos pais impediram os filhos de jogar devido às concussões. É uma pena, porque a ginástica é um esporte incrível para jovens. Em nível amador, talvez não exista atividade mais saudável. Tudo é desvirtuado quando se chega ao profissional.
O feminismo contribuiu para que mais de 150 mulheres testemunhassem contra Nassar?
Isso se deve mais a algumas corajosas mulheres que vieram a público. Foi por isso que o movimento Me Too [eu também] ascendeu. Mulheres, com seus nomes atrelados às revelações, dizendo que aquilo havia acontecido. Creio que o esporte enfim mudará. As ginastas são as atletas mais motivadas e focadas que já conheci. Sempre pensei que a federação não resistiria a um processo de transformação se elas se unissem.
É possível vislumbrar um movimento Me Too no esporte?
Ouvi muito sobre abusos contra outras atletas, principalmente na natação. Então espero que isso motive as garotas a falarem, a perguntarem se isso acontece com as outras. Às vezes elas estão tão isoladas que pensam ser as únicas ou que são culpadas. A mudança virá com as próprias mulheres, porque elas não ficarão mais em silêncio.
Como evitar que abusadores convivam com jovens atletas?
Nassar escondeu o monstro que estava dentro dele. Ele era um psicopata. Devem ser aplicadas medidas que já estavam em vigor, como a proibição de meninas receberem tratamento médico de homens enquanto estiverem sozinhas. O maior desafio da federação será fiscalizar as academias. A questão é como as pessoas que infringiram as regras responderão por seus atos.
Qual o futuro da Federação de Ginástica dos EUA agora?
Precisamos de dirigentes independentes e que não estejam ganhando dinheiro nem fama com a ginástica. O Comitê Olímpico pressionou pela renúncia de toda a diretoria da federação. Eles deveriam mudar o estatuto, porque quase todos os dirigentes tinham conexões com a ginástica. Eles eram donos de academias, treinadores e patrocinadores. Tinham uma agenda própria quando tomavam decisões.
A cultura de abusos pode se repetir na ginástica do Brasil?
Não conheço nada da equipe de ginástica brasileira. Mas se as atletas são muito pequenas e parecem ter 13 ou 14 anos, quando na verdade têm 18, então elas têm problemas de alimentação. Se vocês têm técnicos homens que são muito poderosos, e que têm essas garotas na palma das mãos, então vocês têm problemas.
Raio-X
Nome completo
Joan Ryan
Nascimento
20.set.1959 (58 anos), em Nova York
Profissão
Escritora e jornalista. Hoje é assessora sênior do time de beisebol San Francisco Giants
Livros publicados
"Little Girls In Pretty Boxes" (1995), "Shooting From The Outside" (1997), "The Water Giver" (2009) e "Molina" (2015)
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