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Necessidade de medalhas motiva abusos a ginastas nos EUA

Escritora diz que coragem de atletas em julgamento de Nassar mudará esporte

A escritora americana Joan Ryan, 58, autora do livro "Little Girls In Pretty Boxes"
A escritora americana Joan Ryan, 58, autora do livro "Little Girls In Pretty Boxes" - Divulgação
Edoardo Ghirotto
São Paulo

Os abusos sexuais cometidos pelo médico Larry Nassar contra ao menos 265 ginastas, algumas menores de idade, são consequência de uma cultura que inflige abusos físicos e psicológicos diários às atletas nos Estados Unidos.

Segundo a escritora Joan Ryan, a Federação de Ginástica dos EUA priorizou medalhas de ouro e fez vista grossa para os métodos empregados por treinadores.

"Todos os tipos de abusos na ginástica são motivados pela necessidade de se ganhar medalhas de ouro", diz a autora do best-seller "Little Girls In Pretty Boxes" (Meninas pequenas em caixas bonitas, em tradução livre).

A obra de 1995 trata de casos em que ginastas passavam fome para atingir o peso ideal. Ou eram chamadas de "preguiçosas" quando se lesionavam em treinos.

Nassar, 54, foi condenado no dia 24 de janeiro a cumprir pena de 40 a 175 anos de prisão por abusar sexualmente de atletas que ficaram sob seus cuidados. Ele já havia sido condenado em dezembro do ano passado a 60 anos de prisão por posse de pornografia infantil.

Durante o processo, ele chegou a admitir que cometeu o crime contra sete atletas. No entanto, um total de 156 mulheres –incluindo campeãs olímpicas como Aly Raisman, Jordyn  Wieber, Gabby Douglas e Simone Biles– deram depoimentos de como foram abusadas, algumas de forma anônima, outras enviando cartas e vídeos para a corte, mas a maioria comparecendo pessoalmente ao tribunal para encarar Nassar.

O escândalo levou à demissão em massa da cúpula da Federação de Ginástica dos EUA.

Questionada sobre o Brasil, Ryan diz desconhecer a realidade do país, mas faz um alerta. "Se as atletas parecem ter 13 ou 14 anos, quando na verdade têm 18, então vocês também têm problemas".


Folha - Por que os casos de abuso sexual na ginástica vieram a público apenas agora?

Joan Ryan - Essa é a grande questão. Diferentemente de qualquer outro esporte, a ginástica lida com crianças, que são vulneráveis e influenciáveis. Além disso, é preciso estar concentrado por muitas horas nesse esporte. O mundo dessas atletas é a academia. Lá, elas são treinadas por homens poderosos, carismáticos e abusivos. É uma cultura em que os técnicos gritam que elas estão gordas e são preguiçosas por sentirem dores.

Como o caso de Larry Nassar se encaixa nessa cultura?

Esse médico comete violações, mas ele é legal, porque as alimenta e fica ao lado delas quando há divergências com técnicos. Quando ocorre um abuso, ele diz às garotas e aos pais que eles não sabem a diferença entre um tratamento e um abuso. Essas meninas estão tão condicionadas a aceitar o que um adulto diz sobre o que elas sentem e pensam que começam a questionar a própria realidade.

Como a lei americana protege as atletas menores de idade?

Ela não funciona. Quando escrevi meu livro, há 23 anos, pedi para que as leis trabalhistas fossem aplicadas às ginastas. Essa é a vida delas, embora muitas não estejam trabalhando da forma como definimos vínculos empregatícios. Deveria existir uma lei igual à de atores mirins de Hollywood. Estamos nos enganando ao pensar que esse esporte é um hobby para essas garotas.

O fato de os EUA serem uma potência na ginástica contribuiu para o acobertamento?

Sim. Todos os diferentes tipos de abusos na ginástica são motivados pela necessidade de se ganhar medalhas de ouro. Essa sempre foi a balança que os EUA precisaram enfrentar. Olhe para as chinesas, aquelas garotas parecem ter 10 anos. Não é um grupo muito saudável de jovens. No Leste Europeu costumava ser assim também. Os EUA vão perder se focarem na saúde das atletas. O Comitê Olímpico terá que definir qual é a prioridade: ganhar medalhas ou proteger as atletas?

Quais pressões elas sofreram para ficar em silêncio?

Primeiro, dizem a elas que tudo está bem, que o abuso é um tratamento. Em segundo lugar, se elas forem a público, a federação e os treinadores dirão: se você fizer um escândalo em cima de algo que nós dissemos que não é nada, você estará fora do time. E, por último, Nassar tinha a reputação de ser o melhor médico para ginastas no país. Então quem é você para questionar seus métodos? Dirão que você é maluca. Por isso ficaram em silêncio por tanto tempo.

Esse caso afetará a ginástica?

Creio que será semelhante ao que aconteceu com o futebol americano. Muitos pais impediram os filhos de jogar devido às concussões. É uma pena, porque a ginástica é um esporte incrível para jovens. Em nível amador, talvez não exista atividade mais saudável. Tudo é desvirtuado quando se chega ao profissional.

O feminismo contribuiu para que mais de 150 mulheres testemunhassem contra Nassar?

Isso se deve mais a algumas corajosas mulheres que vieram a público. Foi por isso que o movimento Me Too [eu também] ascendeu. Mulheres, com seus nomes atrelados às revelações, dizendo que aquilo havia acontecido. Creio que o esporte enfim mudará. As ginastas são as atletas mais motivadas e focadas que já conheci. Sempre pensei que a federação não resistiria a um processo de transformação se elas se unissem.

É possível vislumbrar um movimento Me Too no esporte?

Ouvi muito sobre abusos contra outras atletas, principalmente na natação. Então espero que isso motive as garotas a falarem, a perguntarem se isso acontece com as outras. Às vezes elas estão tão isoladas que pensam ser as únicas ou que são culpadas. A mudança virá com as próprias mulheres, porque elas não ficarão mais em silêncio.

Como evitar que abusadores convivam com jovens atletas?

Nassar escondeu o monstro que estava dentro dele. Ele era um psicopata. Devem ser aplicadas medidas que já estavam em vigor, como a proibição de meninas receberem tratamento médico de homens enquanto estiverem sozinhas. O maior desafio da federação será fiscalizar as academias. A questão é como as pessoas que infringiram as regras responderão por seus atos.

Qual o futuro da Federação de Ginástica dos EUA agora?

Precisamos de dirigentes independentes e que não estejam ganhando dinheiro nem fama com a ginástica. O Comitê Olímpico pressionou pela renúncia de toda a diretoria da federação. Eles deveriam mudar o estatuto, porque quase todos os dirigentes tinham conexões com a ginástica. Eles eram donos de academias, treinadores e patrocinadores. Tinham uma agenda própria quando tomavam decisões.

A cultura de abusos pode se repetir na ginástica do Brasil?

Não conheço nada da equipe de ginástica brasileira. Mas se as atletas são muito pequenas e parecem ter 13 ou 14 anos, quando na verdade têm 18, então elas têm problemas de alimentação. Se vocês têm técnicos homens que são muito poderosos, e que têm essas garotas na palma das mãos, então vocês têm problemas.


Raio-X

Nome completo
Joan  Ryan

Nascimento
20.set.1959 (58 anos), em Nova York

Profissão
Escritora e jornalista. Hoje é assessora sênior do time de beisebol San Francisco Giants

Livros publicados
"Little Girls In  Pretty Boxes" (1995), "Shooting  From  The  Outside" (1997), "The  Water  Giver" (2009) e "Molina" (2015)

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