Descrição de chapéu The New York Times

A ascensão e queda sensacionais de um clube de futebol de Paris

Antes do PSG, outra equipe, a Matra Racing, tentou tomar Paris de assalto 

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Rory Smith Elian Peltier
Paris | The New York Times

O valor da transferência foi espantoso, o salário era impressionante, e o impacto foi espetacular.

A transferência pareceu marcar um momento de mudança, uma virada na hierarquia estabelecida do futebol. Um dos mais brilhantes talentos sul-americanos de sua geração, alardeado como próximo detentor da coroa de melhor futebolista do planeta, se transferiu a uma força em ascensão no futebol parisiense, atraído pelo dinheiro e pelo glamour de um clube com dinheiro demais e paciência de menos.

Trinta anos depois, Neymar teria mais ou menos o mesmo efeito; o brasileiro se tornou o jogador de futebol mais caro do planeta por conta das ambições desmedidas do Paris Saint-Germain. Mas ele não foi o primeiro a seguir esse caminho.

Seis anos antes do nascimento de Neymar, o atacante uruguaio Enzo Francescoli, conhecido como El Principe, desbravou essa trilha, ao ser contratado por outro clube que acreditava que seria capaz de combinar sua riqueza quase ilimitada e os atrativos de Paris para criar, praticamente do zero, um time de superastros. Antes de Neymar, antes do Paris Saint-Germain, houve o Matra Racing de Paris.

Seria simplista retratar o grandioso projeto do Paris Saint-Germain, alimentado por dinheiro qatariano, como uma simples repetição da ascensão e queda meteóricas do Racing nos anos 1980. As diferenças entre as duas histórias são grandes demais para que o paralelo se sustente.

O benfeitor do Racing, o empresário Jean-Luc Lagardère, via o futebol como caminho para conquistar glória pessoal e vantagens comerciais; os donos do Paris Saint-Germain transformaram o clube em peça de um jogo geopolítico.

As ambições de Lagardère eram estritamente nacionais. Como presidente do conselho do conglomerado Matra –que produzia de revistas a mísseis–, ele sonhava restaurar o Racing, um dos mais antigos clubes da França, ao status que ele teve em seu apogeu, na década de 1930, quando foi campeão nacional e ostentava uma reputação de luxos inacessíveis aos demais times.

O Paris Saint-Germain moderno não se preocupa com a Ligue 1, a primeira divisão do futebol francês. Em lugar disso, avalia sua força com base no desempenho em palcos mais importantes. Sua temporada não será definida pelo triunfo no modesto campeonato local, mas pela eliminação para o Real Madrid nas oitavas de final da Liga dos Campeões.

E os custos de transferência e salários bancados pela Qatar Sports Investments, a mantenedora financeira do Paris Saint-Germain, para a contratação de astros como Neymar e Kylian Mbappé, nos últimos sete anos, apequena todos os gastos de Lagardère. Quando Francescoli foi contratado, logo antes da Copa do Mundo de 1986, ele recebia salário de 700 mil francos por mês, foi alojado em uma casa em Montmartre e ganhou um Peugeot 205. Pode-se presumir que Neymar dirija um carro um pouquinho mais impressionante.

Mas existe um eco inescapável da história do Racing na revolução muito moderna pela qual vem passando o Paris Saint-Germain, que no passado dividiu um estádio com o time de Lagardère. Se a história do Matra Racing não serve de paralelo, talvez sirva como parábola, como exemplo do qual o Paris Saint-Germain possa aprender. Afinal, o clube não está só usando os mesmos métodos adotados pelo Racing três décadas atrás; também está sujeito às mesmas pressões, e corre os mesmos riscos.

"Não existe paciência em Paris", disse Alain de Martigny, que treinou o Matra Racing na era de Lagardère. "Em Paris, você fica muito mais exposto do que em outros lugares da França. Sempre foi assim. Um time em Paris não pode ser médio".

Jogadores do Matra Racing e do Olympique de Marseille discutem coim juiz durante partida
Jogadores do Matra Racing e do Olympique de Marseille discutem coim juiz durante partida - Philippe Bouchon - 22.ago.87/AFP

UMA GRANDE EXPERIÊNCIA

A grande experiência de Lagardère começou em 1982. Ele já havia conquistado grande sucesso no automobilismo e no hipismo quando voltou suas atenções ao futebol, com a esperança de fundir o Racing a outro clube de Paris, o Paris FC, a fim de criar um rival para o Paris Saint-Germain, então um clube relativamente novo. Seu plano inicial foi rejeitado; por fim, ele teve de se conformar com comprar o Paris FC e mudar seu nome para Racing, antes que a fusão formal acontecesse, um ano mais tarde.

O novo clube começou a vida na segunda divisão francesa, mas Lagardère não queria perder tempo. Logo começou a montar uma equipe capaz de conquistar o acesso. "As contratações foram impressionantes, para um time de segunda divisão", disse o meio-campista Fathi Chebel. "Nosso time tinha elenco de primeira divisão, e Martigny era um dos treinadores mais respeitados da França".

O primeiro grande triunfo de Lagardère veio em 1983, quando ele conseguiu convencer Rabah Madjer, atacante argelino muito promissor, a jogar pelo seu clube, que ainda estava na segunda divisão. "Ele era um jogador espetacular", disse Martigny. "Sua contratação foi como a de Neymar pelo Paris Saint-Germain".

Chebel tem "lembranças esplêndidas" desse período, culminando com o acesso à primeira divisão em 1984. O time que ele descreve tinha jogadores que eram amigos, viviam nos mesmos bairros –Colombes e Maisons Laffitte, perto do velho e charmoso estádio do Racing. Lagardère viria a instalar o clube no Parc des Princes, do Paris Saint-Germain, não muito depois de assumir o controle.

Seis dos colegas de time de Chebel viviam no mesmo prédio que ele. "Uma vez por semana, um jogador tinha de organizar alguma coisa, e íamos todos juntos a um restaurante ou concerto", ele disse. Lagardère encorajava o companheirismo, mas também oferecia jantares suntuosos aos jogadores. A mulher dele, conta Chebel, muitas vezes levava presentes para as mulheres e namoradas dos atletas.

Mas quando o Racing caiu, depois de apenas uma temporada na elite do futebol francês, Lagardère mudou de rumo. "Ele era uma história de sucesso, seu nome significava sucesso", disse Martigny. "Não podíamos fracassar". O treinador foi demitido. Quando o Racing imediatamente voltou a subir, em 1986, Lagardère deve "ter acreditado que era hora de mudar de dimensão".

Na metade daquele ano, o Racing chocou o mundo, como o Paris Saint-Germain faria em 2017. Pouco antes da Copa do Mundo daquele ano, o clube contratou Francescoli, então jogador do River Plate, da Argentina. Ele logo foi seguido por seu colega de seleção uruguaia, Ruben Paz, e pelo ponta da Alemanha Ocidental Pierre Littbarski. A mais impressionante contratação foi a de Luis Fernandez, da seleção francesa, que na época era capitão do Paris Saint-Germain.

"Tínhamos 13 jogadores de seleção, algo assim", disse Littbarski. "Era uma ideia interessante, a chance de construir alguma coisa do nada".

A onda de contratações continuou no ano seguinte. Lagardère trouxe Artur Jorge, que acabava de vencer a Copa Europeia de Clubes com o Porto, para treinar o time, e o clube, agora conhecido como Matra Racing, não parava de trazer reforços.

David Ginola jogou ainda adolescente contra o Racing, por seu primeiro time, o Toulon, em 1987. "Era maravilhoso ver tantos nomes famosos", ele disse. Ginola jogou bem naquele dia, e no ano seguinte foi vendido para o Matra. "Eu mal acreditei", ele disse sobre seu primeiro dia no clube, recordando a sessão da foto oficial, que reunia jogadores de talento "suficientes para montar dois times de primeira divisão".

No mesmo ano, Lagardère tentou contratar outro jovem talento francês, Eric Cantona, do Auxerre. Ele convidou o jogador e sua mulher para um jantar em sua casa; Cantona recorda ter visto "criados de peruca, carregando alabardas; era como a Idade Média".

Luis Fernandez, do Matra Racing, durante partida contra o Toulon, pela 36ª rodada do Campeonato Francês de 1988
Luis Fernandez, do Matra Racing, durante partida contra o Toulon, pela 36ª rodada do Campeonato Francês de 1988 - Patrick Herzog - 21.mai.88/AFP

RAIVA E AGRESSÃO

Embora na superfície tudo fosse glamoroso como Lagardère desejava –glamoroso como Paris exigia–, na realidade o Racing não era um time feliz.

"A organização não era profissional", disse Littbarski. "Quando você pensa no tanto que foi investido, ficaria surpreso ao ver nossas instalações de treinamento. Ainda precisávamos lavar nossos uniformes sozinhos, coisas assim".

Littbarski curtiu o período em que viveu em Paris –fora dos campos. "Eu era chegado a Paz, Francescoli, os jogadores sul-americanos". Em campo, porém, ele se sentia profundamente infeliz. O alemão voltou ao Colônia, depois de apenas uma temporada. Estava tão desesperado para sair que pagou a multa rescisória de seu bolso. "Os caras do Racing trataram o assunto com cortesia", ele conta. "E depois de algum tempo o Colônia me devolveu parte do dinheiro".

Littbarski não estava sozinho. Francescoli aguentou por três anos, mas ao que se sabe sofreu muito com a situação.

"O nível de agressão nos treinos era incrível", disse Ginola. "A atmosfera era realmente complicada. Havia muitos jogadores de nome que não, eram titulares, e eles não estavam felizes. Era difícil para o treinador, e difícil para mim como jogador jovem. O vestiário era horrendo".

Em público, as coisas não eram muito melhores. Os resultados do Racing eram moderados, e nada espetaculares –o time terminou o campeonato francês em 13º lugar em 1987 e em sétimo em 1988–, mas o clube enfrentava dificuldades para atrair torcedores. Pelo final de 1988, seu público médio era de apenas 7.000 torcedores por partida.

"Lembro-me de um jogo em que tentamos encher o Parc des Princes. A Matra distribuiu ingressos grátis para muitas crianças", disse Ginola. "Íamos jogar contra o St. Etienne, um dos clubes históricos da França. Entrei no gramado para o aquecimento e a garotada toda estava com a camisa verde do St. Etienne. Foi como jogar na casa do adversário".

Diante de sua cultura tóxica e da apatia generalizada do público, o Matra Racing implodiu. Evitou por pouco o rebaixamento em 1989 –sobrevivendo pelo saldo de gols–, mas àquela altura Lagardère estava farto. Sob pressão dos acionistas da Matra, ele anunciou que deixaria o clube.

Novamente sob o nome Racing Paris, o clube se viu forçado a vender seus astros. Ginola se transferiu para o Brest, e Francescoli foi para o Marseille, onde ele conquistaria um título francês e inspiraria um jovem torcedor chamado Zinedine Zidane –a tal ponto que Zidane deu ao seu primeiro filho o nome Enzo. O clube voltou à obscuridade, e nunca mais saiu dela. A aventura toda custou US$ 300 milhões a Lagardère e à Matra.

É improvável que esse seja o destino do Paris Saint-Germain. Há muito mais em jogo, o dinheiro investido é muito maior, e a Qatar Sports Investments simplesmente não vai desistir. Mas isso não significa que não haja lições a aprender com a ascensão e queda do Matra Racing –e sobre a necessidade de cautela.

"Paris é um lugar muito especial", disse Littbarski. "Talvez seja como Madri. O futebol precisa entreter. As pessoas querem entretenimento. Essa é a coisa mais difícil".

Como a Matra, como Lagardère, o Paris Saint-Germain tentou atender a essa demanda. Trouxe os maiores astros que pôde, na esperança de "criar uma mentalidade de futebol em Paris", como disse Littbarski. Mas isso acarreta um risco, como sabem bem aqueles que se recordam do Racing.

"Pode-se ter todo o talento do mundo", disse Ginola. "Mas o mais importante é investir com sabedoria, e não sair comprando um monte de jogadores talentosos. As peças precisam se encaixar".
 

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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