'Ser um atleta medalhista olímpico não apaga sua cor', afirma Fofão

Ex-levantadora diz que racismo persiste no esporte e fala do ouro em Pequim

A ex-levantadora de vôlei Fofão lançará sua biografia na próxima semana
A ex-levantadora de vôlei Fofão lançará sua biografia na próxima semana - Bruno Santos/Folhapress
Daniel E. de Castro
São Paulo

A história da ex-levantadora Fofão, 48, preencheria vários capítulos de uma enciclopédia do vôlei brasileiro.

Nos 30 anos de carreira profissional (1985-2015), ela disputou cinco edições dos Jogos Olímpicos, ganhou três medalhas e trabalhou com os dois principais treinadores do esporte no país: José Roberto Guimarães e Bernardinho.

Dez anos após o ouro olímpico em Pequim, a ex-atleta dedica-se a projetos pessoais e profissionais. O mais recente é a sua biografia, que será lançada na terça-feira (10).

No livro, conta-se a história de como a tímida Hélia Souza virou Fofão ainda na adolescência, por causa das bochechas proeminentes, além dos momentos mais doloridos, vitoriosos e turbulentos com a seleção brasileira.

Criada na periferia de São Paulo, Fofão diz em entrevista que se vê como referência para mulheres brasileiras e que o racismo ainda é realidade no esporte nacional.



Folha - Hoje é mais fácil para uma menina começar no vôlei do que quando você começou?
Fofão - Hoje existem mais lugares para fazer testes, mas as exigências para uma atleta começar são maiores. Na minha época não pesava tanto a altura, você tinha que gostar do esporte e praticar, aí ia se desenvolvendo. Hoje já procuram um tipo, uma altura.

O que foi determinante para a sua longevidade no esporte?
Sempre cuidei de mim, tive responsabilidade com meu corpo, alimentação, descanso. Quando você cuida do corpo, ele corresponde. Quanto mais velha eu ia ficando, eu ia ficando melhor.

As principais equipes do país continuam dependentes de patrocinadores e clubes fortes. Afeta para a atleta saber que um time pode acabar de uma temporada para a outra?
Essa insegurança continua muito difícil. Mesmo os clubes que têm lugar fixo, como Osasco, Rio de Janeiro e Minas, não têm a segurança de que no próximo ano vão ter um patrocinador. A fase mais difícil para o atleta é o fim de temporada, quando ele não sabe se estará empregado amanhã.

Os atletas da seleção talvez tenham mais tranquilidade porque são vistos no Brasil e fora, mas quem não é não consegue ter uma tranquilidade.

Você é uma mulher negra, que cresceu na periferia de São Paulo, pegava três ônibus para treinar e ganhou três medalhas olímpicas. Acredita ser um exemplo para outras mulheres com o seu perfil?
Acho que sou referência para muitas pessoas. É muito difícil ser mulher, negra, de família simples e conseguir vencer. Tem que ter uma estrutura familiar muito grande e mental também, porque você vai encontrando barreiras. Ou segue em frente ou desiste.

Tive muitas dificuldades, mas nunca gostei de expor porque não queria que sentissem pena. Guardei isso para mim, mas de alguma forma me fortalecia. A gente acha que só quem tem condições pode vencer na vida.

Recentemente a judoca Rafaela Silva, também medalhista olímpica, relatou caso de racismo em abordagem policial no Rio. Estar nesse patamar não elimina o preconceito?
Teve o caso da Rafaela, mas também o da Fabizona e o do Wallace [medalhistas do vôlei alvos de insultos racistas em quadra], pessoas “tops” no Brasil, atletas de referência. Você fica assustado porque isso existe também no esporte. 

É muito triste porque são pessoas que representam o Brasil, são medalhistas, mas existem pessoas preconceituosas que passam por cima disso. Não acho que ser um atleta medalhista apague a cor dele, de forma alguma.

Eu nunca vivi uma situação de preconceito, se vivi não dei importância, mas não tem como a Rafaela dar um depoimento desses e você não se colocar no lugar dela, não saber como foi ruim.

Você e o Zé Roberto tornaram-se amigos, mas na Olimpíada de 2004 você ficou chateada com ele por ter sido reserva durante todo o torneio. Foi difícil retomar a relação de confiança para os Jogos de 2008?
Ali não tinha a ver com amizade, era técnico e atleta. Eu senti que poderia ter sido muito mais utilizada. Nunca expus isso a ele, acho que todo técnico escolhe quem quer para jogar, mas me senti deixada de lado. Foi difícil para caramba lidar com isso.

Foi um desafio para mim olhar para ele de novo e recomeçar o trabalho. Mas minha história não era aquela [de 2004], e eu falei: vou construir minha história com o Zé ou quem quer que seja o técnico.

Fofão comemora a vitória da seleção brasileira diante da Sérvia por 3 sets a 0, na Olimpíada de Pequim-2008
Fofão comemora a vitória da seleção brasileira diante da Sérvia por 3 sets a 0, na Olimpíada de Pequim-2008 - Flávio Florido - 13.ago.08/UOL/Folhapress

O livro conta que um pedido da ex-levantadora Fernanda Venturini, então aposentada, para voltar à seleção pouco antes dos Jogos de 2008 fez você dar um ultimato no Zé Roberto. Como foi isso?
Quando eu fui chamada novamente [para a seleção], abri mão de muitas coisas, e a gente viveu muita coisa ruim: perdeu, chorou, se machucou.

Acho que quando uma pessoa, um ano antes da Olimpíada, tem o desejo de voltar para a seleção, não se justifica. Não teve problema de lesão, onde a gente precisasse repor peça. Seria pesado para o grupo e para mim se ele aceitasse que ela voltasse.

Eu falei: “Zé, você me desculpa, mas se ela chegar eu saio”. Ele não me deixou claro o que faria, até o dia da convocação eu sofri muito. Se isso acontecesse, acho que seria a coisa mais frustrante da minha vida. E ele foi correto naquilo que propôs [Fernanda Venturini não foi chamada e Fofão foi titular nos Jogos].

Você participou de três derrotas marcantes: Olimpíada de 2004 e Mundial de 2006 contra a Rússia e Pan de 2007 contra Cuba. O que doeu mais: as derrotas ou a fama de a seleção ter amarelado?
Tudo dói muito. É muito difícil fazer um trabalho onde existe desconfiança de quem torce. Todo campeonato era esse peso de ter que ganhar, e a gente não conseguia. Eu fiquei muito mal em 2007, mas olhei Cuba no pódio e falei que era a última vez que estaríamos abaixo de alguém.

Cada derrota fortalecia, a gente ficava com mais raiva. Não raiva de ficar descontrolada, mas de saber que éramos mais fortes do que isso. Muitas vezes a raiva foi o ponto para fortalecer aquele grupo.

Qual é a principal diferença de trabalhar com o Zé Roberto e com o Bernardinho?
A maneira como cada um passa as informações para as jogadoras. O Bernardo sempre foi aquele técnico que teve mais dificuldade, foi operário, teve que pesquisar tudo o que podia para melhorar. O Zé foi mais habilidoso, nasceu com o dom de fazer as coisas fáceis.

O Bernardinho faria bem em se lançar na política?
Se faria bem eu não sei, mas que ele iria enlouquecer todo mundo… [risos] Como ele gosta de desafios, talvez fosse uma outra experiência de vida, mas não consigo imaginá-lo fora do esporte.

Após se aposentar, você foi chamada pelo Zé Roberto para trabalhar com ele na seleção e não aceitou. Aceitaria hoje?
Voltar a trabalhar com vôlei é voltar a ter a vida que eu tinha ou até um pouco pior, porque eu faria parte de uma comissão. Ainda não me sinto preparada, mas fico feliz que as pessoas queiram isso.

EX-ATLETA GANHA LIVRO E DOCUMENTÁRIO

O jornalista Rodrigo Grilo e a professora do Grupo de Estudos Olímpicos da USP Katia Rubio lançam “Toque de Gênio - a história e os exemplos de Fofão” às 19h de terça (10), no Cinesala, em São Paulo (rua Fradique Coutinho, 361, Pinheiros). Na mesma noite será lançado o documentário “Brilhante”, realizado em parceria com a Março Produções, também sobre a trajetória da ex-levantadora. Fofão participará de sessão de autógrafos no local.

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