Sem políticas contra abuso, confederações não recebem denúncias

Psicóloga, atleta e COB afirmam que entidades não estão preparadas para lidar com o tema

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Daniel E. de Castro Marcelo Laguna
São Paulo

Debates sobre assédio no esporte e políticas para combatê-lo ainda estão longe do radar das principais confederações brasileiras.

A Folha perguntou às 35 entidades responsáveis por esportes olímpicos no país se elas possuem um programa específico de combate ao assédio e abuso sexual de crianças e adolescentes.

Das 23 que responderam, nenhuma possui uma política detalhada sobre o assunto, e todas afirmaram não ter recebido diretamente denúncias de casos nos últimos dez anos.

Após ginastas acusarem de abuso sexual o técnico Fernando de Carvalho Lopes, algumas confederações disseram estar revendo os seus parâmetros para lidar com o tema. As denúncias foram reveladas pela TV Globo, e o treinador nega as acusações.

O técnico Fernando de Carvalho Lopes, que foi acusado por ginastas de abuso sexual durante a etapa de Sao Paulo da Copa do Mundo de ginastica, em maio
O técnico Fernando de Carvalho Lopes, que foi acusado por ginastas de abuso sexual durante a etapa de Sao Paulo da Copa do Mundo de ginastica, em maio - Ricardo Bufolin/CBG/Divulgação

Professora da USP, a psicóloga Katia Rubio entrevistou para um livro 1.320 atletas olímpicos brasileiros. Ela afirma que eles relataram diversos casos de abuso, mas que sempre houve uma naturalização do assédio no esporte.

“Tem o caso de uma atleta que relatou que o técnico viajava e fazia questão de reservar apenas um quarto, para dormir com a atleta, e ela era abusada. Quando chegava em casa, relatava isso para a mãe e ela falava: não, minha filha, ele é um pai para você”, conta a pesquisadora.

Segundo Rubio, o esporte reflete as mudanças culturais da população, que hoje clama por mais atenção ao tema do assédio de forma geral. “Não é que estes casos não existiam, mas não eram vistos como abuso, como crimes”, diz.

A maioria das confederações possui um canal de ouvidoria em seus sites ou por email para receber denúncias sobre diferentes temas. Após a repercussão do caso da ginástica, o Comitê Olímpico do Brasil (COB) anunciou que criará um canal específico para lidar com casos de abuso.

A nadadora Joanna Maranhão, 31, denunciou em 2008 um treinador por abuso sexual durante a sua infância. O caso resultou na lei que leva o nome dela e prevê que o prazo para prescrição de crimes sexuais contra crianças e adolescentes comece a contar quando elas fizerem 18 anos.

Dez anos depois, Maranhão afirma que as confederações ainda não estão preparadas para lidar com o tema.

“Esses canais só vão ser suficientes se as pessoas se sentirem acolhidas e confiantes de que algo vai acontecer a partir das denúncias”, afirma.

De acordo com Rubio, é necessário trabalho cuidadoso de preparação para que o atleta consiga lidar com a dor e se sinta seguro para falar.

“Nem os psicólogos que hoje estão nos clubes têm condição de dar esse suporte, porque são vistos como pessoas do sistema. O apoio que o atleta precisa vem de fora, alguém que não tenha relação com essa rede que o cerca. Enquanto ele não enxergar essa pessoa, não vai falar”, afirma.

Para a nadadora, punir o agressor é importante, mas o foco das entidades deve ser a vítima. “Dar credibilidade à palavra dela, tirar do convívio do abusador no momento em que a denúncia for feita e dar suporte psicológico não apenas momentâneo”, diz.

Em abril, Maranhão participou da assinatura de acordo entre a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos e o Ministério Público do Trabalho para estabelecer ações de prevenção e combate ao assédio e abuso no esporte.

A parceria também foi firmada pela Procuradoria com as confederações de ciclismo e ginástica. Esta última agora está desenvolvendo uma cartilha de prevenção inspirada em modelo americano que seria a primeira experiência detalhada sobre o tema no Brasil.

“Precisa de uma regra de conduta genérica urgente, mesmo que seja o básico do básico. Depois vamos para as regras específicas dos esportes”, afirma o procurador-chefe Gláucio Araújo de Oliveira.

Quem sofrer abuso será ouvido, afirma comitê olímpico

Prestes a ser lançado, o canal de ouvidoria do Conselho de Ética do COB (Comitê Olímpico do Brasil) quer ser uma ferramenta importante no auxílio do combate ao abuso sexual no esporte do país.

Esta é a visão do advogado Alberto Murray Neto, presidente do conselho, que entrou em funcionamento no dia 23 de março.

Segundo Murray, a ideia de instalar esta ouvidoria fazia parte do programa de compliance do COB —conjunto de regras para o cumprimento das políticas e diretrizes de uma entidade.

A maior preocupação do Conselho de Ética é que todas as denúncias que chegarem sejam apuradas.
“Aquele atleta que sofrer qualquer tipo de assédio moral ou sexual, tenha a certeza de que, quando fizer a denúncia, será ouvido”, assegurou.

Murray reconhece que no trabalho de apuração de possíveis novas denúncias de abuso, ainda não dá para contar com a eficiência das confederações olímpicas brasileiras.

“É fato que nos últimos tempos, muitas confederações modernizaram os estatutos, com a criação de seus próprios conselhos de ética. Mas a maioria absoluta não está preparada para lidar com casos assim, especialmente aquelas com poucos recursos financeiros”, analisou.

EUA criaram cartilha detalhada sobre o tema

Após ginastas dos EUA acusarem de abuso sexual pessoas ligadas à federação do país, incluindo o médico Larry Nassar —denunciado por mais de 260 atletas e condenado à prisão—, a entidade publicou documento de 146 páginas com normas de conduta. O programa levou seis meses para ser elaborado, e mais de 160 pessoas do meio foram entrevistadas. Ele proíbe, por exemplo, que adultos fiquem sozinhos com um menor de idade em qualquer situação, busca incentivar atletas e familiares a denunciarem violações e exige que suspeitas sejam reportadas imediatamente às autoridades legais e a um órgão ligado ao comitê olímpico do país

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