Descrição de chapéu Copa do Mundo

Juventude russa desfruta de bolhas de liberdade ante duras regras morais

Cafés e galerias de arte dão ar globalizado a bairros de Moscou

Silas Martí
Moscou

Uma enorme muralha vermelha no coração de Moscou separa o Kremlin do resto da capital russa, isolando o poder do presidente numa fortaleza triangular bem à vista, mas fora do alcance da população.

Vivendo à sombra do centro do comando político do país, os jovens moscovitas da primeira geração pós-União Soviética, garotos e garotas de 20 e poucos anos nem nascidos quando a superpotência comunista se dissolveu, em 1991, parecem ter seguido o exemplo dos muros de contenção.

Nos arredores do Kremlin, os bairros mais abastados da capital russa escondem uma vida paralela de bares, boates, cafés, galerias de arte e academias de ginástica mais próximos em aparência e dinâmica de seus pares nas capitais ocidentais, mais progressistas e liberais, do que do sistema de rígidas regras de moral e costumes que regem a Rússia atual.

Enquanto o maior país do planeta vem se isolando do resto do mundo sob o governo de Vladimir Putin, a cidade de Moscou tenta criar bolhas de liberdade onde suas legiões de modernos endinheirados podem viver uma doce --e alienada-- existência.

"Nunca falamos de política nem pensamos muito no que está acontecendo no resto do país porque sabemos que não podemos mudar nada", diz Max Letunovskiy, chef de um café batizado Yunost, a palavra russa para juventude, no centro da cidade. "Então criamos aqui um pequeno mundo isolado, onde nada importa."

O universo secreto de Letunovskiy, ele reconhece, lembra muito as ocupações urbanas de Berlim com toques de um hipsterismo globalizado.

É um casarão velho com móveis de segunda mão arranjados em torno de uma banheira branca com pezinhos dourados em forma de patas de leão e uma geladeira de contornos retrô estampada com a marca da Volkswagen, numa fusão de estilos do passado calculada para parecer toda acidental.

"Nossos clientes são a classe média que nunca tivemos na Rússia, gente que não sabe o que foi o comunismo e gosta de viajar. Não tem nada a ver com nossos pais", diz o chef. "São pessoas de cabeça aberta. E o que elas mais querem, na verdade, é ter só uma vida normal. Tentamos criar essa vida normal entre quatro paredes."

É como se a fina flor da juventude moscovita crescesse só em estufas. E, dentro dessas redomas, todos os comportamentos são aceitos.

"Não importa sua origem, sua religião, sua orientação sexual", diz Letunovskiy. "Não podemos deixar de viver por causa do Putin. Mas por isso não ligamos a TV, nunca vemos as notícias."

O chef não está sozinho em sua aversão à mídia estatal nem no hábito de consumir notícias só pelas redes sociais, embora nem todos esses hipsters moscovitas torçam o nariz para o presidente do país.

"Sou bem patriótica e gosto do Putin. Ele é muito bom na política", dizia a jovem estilista Liza Mikhaleva, tomando um dry martini no Strelka, bar numa ilha do rio Moscou com vista para o centro da cidade.

"Os policiais são muito educados até quando interrompem protestos. E essa coisa de liberdade de expressão só depende do ambiente em que você circula. Trabalho no mundo da moda e nem sinto essas questões. Não me abalo."

Sua amiga, Anna Saveleva, também não pensa muito sobre esses assuntos desde que se mudou para Londres, seguindo uma rota típica de russos de famílias mais ricas, mas observa mudanças de comportamento em Moscou que desmentem os estereótipos de opressão no país que vêm circulando pelo mundo todo.

"Muitas pessoas, como eu, quiseram ir embora da Rússia", ela conta, no balcão do Strelka. "Mas os jovens que ficam estão rompendo com algumas tradições para chamar a atenção. Tem tudo a ver com rebelião e expressão pessoal."

Não é qualquer rebelião. No mesmo bar, dois amigos empenhados em conquistar torcedoras mexicanas da Copa do Mundo com drinques exóticos tinham uma ideia muito distinta sobre a tal liberdade.

"Moscou é uma cidade livre. Poder pedir uma pizza a qualquer hora da madrugada, por exemplo, é ter liberdade", dizia o marqueteiro Azat Zaliaev.

"É um bom lugar para morar. Era mais hippie e, nos últimos anos, virou hipster mesmo, ficou mais chique. E você pode dizer o que pensa, só não vale querer falar sobre a política."

Nesse ponto, a extensa reconfiguração urbana do centro moscovita nos últimos anos, obra de um prefeito higienista que acabou com ambulantes e feiras livres, deu uma cara de metrópole mais cosmopolita à capital russa.

É como se tentasse acalmar os ânimos pelo viés da gentrificação, mas também acabou despertando críticas de que a cidade ficou estéril, limpinha e brilhante demais, uma "pureza que agride os olhos e lembra corredores de hospital", nas palavras de Ilia Klishin, colunista de um jornal local.

Mas a sujeira sobrevive em cantos mais discretos como o Untitled, outro bar da moda com mais cara de pé sujo paulistano. Numa noite recente, um grupo de atores e músicos se esbaldava no caraoquê, cantando músicas da trilha sonora do "Rei Leão" e hits mais tristonhos do Depeche Mode.

"Este é o lugar mais louco de Moscou", dizia o músico Iuri Gerbei, com um drinque nas mãos. "Tentam fazer a Rússia parecer um lugar ruim. Mas está mudando muito e muito rápido. Sinto que posso fazer tudo que quero. Quando elas querem se sentir livres na Rússia, as pessoas vêm para cá."

Seu parceiro na cantoria da pista, um músico conhecido na noite moscovita como Nikon Mackie, também defendia o ar liberal da festa que avança até a hora do café da manhã.

"Só posso dizer que sou livre no centro de Moscou. Sei que no resto da Rússia não é assim. É tudo propaganda, e ninguém entende o mundo agora. Não entendem que há feministas, gays, negros", dizia ele.

"Então fingimos que está tudo bem, festejamos porque sabemos que poderia ser pior."

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