Descrição de chapéu Copa do Mundo

Marrocos tem um time importado para jogar a Copa do Mundo

A maioria dos jogadores que defendem a seleção africana na Copa nasceu na Holanda e na França

Casablanca | The New York Times

Mesmo antes de começar a conversar com o meio-campista Sofyan Amrabat, Ruud Gullit sabia que não conseguiria convencê-lo.

A tarefa –convencer Amrabat, 21, um futebolista de prodigioso talento, a defender a seleção holandesa– oferecia algumas facilidades inerentes. Amrabat, afinal, nasceu na aldeia de Huizen, perto de Amsterdã, viveu por toda a vida na Holanda, e se formou nos clubes do país.

Até que chegou o momento da escolha: fazer sua carreira em seleções como atleta da Holanda, onde aprendeu a jogar futebol, ou defender o Marrocos, o país norte-africano onde seus pais e avós nasceram.

"A família pressiona para que eles joguem pelo Marrocos", disse Gullit, um famoso ex-jogador holandês que era parte da equipe técnica da seleção holandesa quando conversou com Amrabat, no ano passado. "O que quer dizer que na verdade não havia escolha. Minha opinião é que eles não têm escolha".

Amrabat é um dos cinco jogadores nascidos na Holanda que faz parte do elenco da seleção marroquina na Copa do Mundo que começou esta semana. A equipe tem um capitão que nasceu na França e joga na Itália, e um zagueiro espanhol formado pelo Real Madrid. Na verdade, o retorno da seleção principal do Marrocos ao maior torneio do futebol mundial pela primeira vez em 20 anos dependeu de uma equipe pesadamente povoada por jogadores nascidos fora do país e formados em escolas de clubes e de federações nacionais de futebol de toda a Europa.

Na estreia da Copa do Mundo, derrota do Marrocos para o Irã por 1 a 0, Armabat desmaiou em campo após uma dividida e precisou ser substituído.

Quando o Marrocos anunciou sua lista final de convocados, 17 dos 23 nomes eram de atletas nascidos fora do país. E a verdade é que o número poderia ter sido ainda maior.

O jovem atacante Mimoun Mahi ficou de fora da convocação, mas sua carreira exemplifica os atrativos do Marrocos para jogadores nascidos a centenas e até milhares de quilômetros de lá.

Sentado a uma mesa no centro de treinamento de seu clube na Holanda, o Groningen, o rosto de Mahi se iluminou, em entrevista alguns meses atrás, ao descrever o gol que marcou em sua primeira partida pelo Marrocos, em setembro de 2017. Não foi uma jogada marcante, o sexto gol em uma goleada de seis a zero sobre o Mali. Mas, para ele, marcar o gol significou muito, ainda mais por saber que seus pais, que deixaram o Marrocos e se radicaram na Europa há três décadas, estavam assistindo à partida e chorando lágrimas de alegria no estádio Príncipe Moulay Abdellah, em Rabat.

"É incrível ver um filho ali no estádio, depois de anos assistindo aos jogos apenas pela TV, e de repente ver um filho ali no gramado", disse Mahi, que nasceu na Holanda e fez toda sua formação futebolística lá, recordando o momento.

Outros pais, e outros filhos, certamente sentiram emoções parecidas naquele dia: os seis gols de Marrocos contra o Mali foram marcados por jogadores nascidos na Europa.

RAÍZES CONTINENTAIS

A história da classificação do Marrocos para a Copa talvez sirva como melhor ilustração moderna de como países recorrem às suas diásporas para conquistar sucesso no futebol. A última seleção marroquina que foi a uma Copa, em 1998, só tinha dois jogadores nascidos fora do país. Agora eles são 17. E muitos dos astros atuais são fruto de uma campanha de recrutamento que ganhou força em 2014, o ano em que a seleção da vizinha e rival Argélia usou talentos formados na França para chegar às oitavas de final da Copa do Mundo.

Mas o sucesso da campanha do Marrocos também serve como lembrete de que, à medida que o nacionalismo ressurge na Europa, alguns jogadores parecem sentir que se enquadram melhor aos países de seus pais e avós do que aos países que sempre viram como lar.

A maioria dos jogadores que defenderão o Marrocos na Copa nasceu na Holanda e na França. Outros jogadores foram selecionados com base em uma vasta rede de olheiros marroquinos na Bélgica, Alemanha e Espanha. O Marrocos nem de longe é o único país a recorrer a jogadores nascidos no exterior, para criar uma seleção competitiva para o torneio. Wahbi Khazri, o meio-campista que comanda a seleção da Tunísia, está entre os diversos jogadores de sua equipe que nasceram na França, e Senegal, Portugal, Suíça e até mesmo a anfitriã Rússia convocaram jogadores nascidos no exterior.

Mas nenhuma seleção chegará à Copa com tantos jogadores estrangeiros quanto o Marrocos.

"Explicamos a eles que o mais importante é o espírito de equipe", disse Hervé Renard, o francês que treina o Marrocos. "Para conseguir alguma coisa no futebol, é preciso espírito de equipe, não importa de onde você venha".

O agente Charaf Boudhan explicou que os jogadores que podem escolher que países defenderão muitas vezes enfrentam uma equação completa, para a qual tipicamente elos de família e emoções pesam em uma direção e cuidadosas considerações profissionais pesam em direção diferente.

Hakim Ziyech, o artilheiro da seleção marroquina, nasceu em Dronten, no centro da Holanda. Inicialmente, Ziyech parecia inclinado a optar pelo seu país natal, dizendo a um jornalista em 2015 que, em sua opinião, "é a Holanda que muitas vezes conduz a grandes torneios". Mas quando a Holanda ficou de fora da Eurocopa de 2016, ele mudou de ideia.

Para Mahi, que como Ziyech jogou pelas seleções da Holanda nas categorias inferiores, o motivo da decisão foi realizar um sonho de seu pai. "Penso com o coração", disse Mahi, "e meu coração é do Marrocos".

Há preocupações práticas envolvidas, ao optar por uma seleção africana de preferência a uma europeia. As viagens podem ser complicadas, e as condições de trabalho desafiadoras. E porque o principal torneio de seleções africano é disputado a cada dois anos, em janeiro, participar dessa competição –e perder partidas pelo clube que o jogador defende na Europa– pode criar sérios conflitos. E perder o lugar em um time por conta de uma ausência de um mês no meio da temporada pode ter sérias consequências profissionais.

Para alguns jogadores, porém, a identidade importa mais. A Europa vem registrando uma ascensão dos sentimentos nacionalistas, nos 10 últimos anos, e com isso o avanço de partidos que criticam as políticas de imigração abertas que vigoravam no passado. Algumas dessas forças conseguiram sucesso eleitoral, entre os quais o Partido da Liberdade, da Holanda, cujo líder, Geert Wilders, ataca frequentemente a minoria marroquina do país, com epítetos racistas. Em campanha no ano passado, Wilders descreveu os marroquinos como "escória".

​Maurice Crul, professor da Vrije Universiteit Amsterdam cujos tópicos de pesquisa incluem os filhos de imigrantes à Europa, disse que a atual safra de jogadores que estão escolhendo que seleção defender é parte da geração posterior ao 11 de setembro, um grupo que "se conscientizou de que sua religião é indesejada".

Isso afastou ainda mais da sociedade convencional pessoas que já são marginalizadas pela pobreza, por questões de idioma e por questões culturais. "Essa geração se sentiu excluída desde o começo de sua vida, e essa é uma questão importante", disse Crul.

Mas também existe oposição dentro do futebol. Em 2011, vazou uma gravação de Laurent Blanc, então treinador da seleção francesa, na qual ele afirmava que era a favor da limitação do número de jogadores com dupla cidadania nas academias nacionais de futebol.

"Isso deveria ser inteiramente erradicado", disse Blanc na gravação. "Não estou falando em sentido racista, nada disso. Que esses caras usem o uniforme de nossa seleção dos 16 ou 18 anos e até sub-21, e depois saiam para times da África ou da África do Norte, isso me incomoda, Por isso, idealmente, deveríamos decidir, extraoficialmente, que não aceitaremos mais que X garotos que possam optar por nos deixar, em algum momento. Como uma cota, mas sem admitir o fato abertamente".

Os comentários causaram uma feroz controvérsia, e dividiram até mesmo os veteranos da seleção francesa multicultural que Blanc capitaneou na conquista da Copa do Mundo de 1998. Mas duas investigações o inocentaram de acusações de discriminação, e ele manteve o posto como treinador da França.

SELEÇÃO POLIGLOTA

Depois que diversas nações começaram a naturalizar jogadores apenas para reforçar seus elencos, a Fifa em 2004 começou a exigir que os jogadores demonstrassem "conexão clara" com o país que desejavam defender. A Fifa continuou a permitir que jogadores adotassem novas nacionalidades –Espanha, Estados Unidos e Itália, entre outros, tiraram vantagem disso–, desde que os jogadores envolvidos cumprissem diversos requisitos e não tivessem defendido a seleção de outro país nas categorias adultas.

No caso do Marrocos, isso permitiu que diversos jogadores que defenderam seleções europeias nas categorias de base mudassem de aliança. Mas recolher jogadores de diversos países cria desafios especiais.

Os jogadores do Marrocos, por exemplo, chegam para treinar falando uma mistura de francês, espanhol, flamengo, holandês e alemão, além de árabe e tamazight, um idioma berbere falando em certas áreas do país.

Renard, o treinador francês da equipe, treina seleções africanas há mais de uma década. Para resolver o problema da linguagem, ele faz preleções em inglês e francês; seu assistente Mustapha Hadji, integrante muito popular da seleção marroquina da Copa do Mundo de 1998, intervém quando o árabe é necessário.

"Às vezes você percebe que os jogadores que estão diante de você não compreendem o que você está dizendo", disse Renard em entrevista em Casablanca, em janeiro. "Eu peço a um assistente que fale com a pessoa, porque vejo em seu rosto que ela não está compreendendo".

Renard disse que alguns amigos o aconselharam a não aceitar o emprego no Marrocos, em 2016, dizendo que seria impossível unir jogadores de origens tão diferentes. Mas os Leões do Atlas, como a seleção é conhecida, passaram invictos pela fase final da eliminatória, superando com facilidade o adversário mais perigoso, a Costa do Marfim, no jogo final, e garantindo vaga na Copa.

"Eles me diziam que eu precisava tomar cuidado, porque os caras nascidos na Holanda não se dão bem com os caras nascidos na França", afirmou Renard. "Mas francamente, não vi isso".

"Para mim, foi completamente diferente. Criamos um time. Vamos jogar futebol. Não vi coisa alguma de diferente do que vi na Zâmbia, na Costa do Marfim ou na França, exceto pela preleção antes do jogo, que eu preciso fazer em inglês e francês".

PORTO SEGURO

Visite qualquer grande cidade do Marrocos e a popularidade do futebol se revelará imediatamente: há crianças jogando bola em toda parte, e os televisores estão sempre sintonizados no esporte. Toda uma geração de torcedores estará vendo sua seleção jogar uma Copa do Mundo pela primeira vez, o que ajudará muita gente a esquecer que a equipe que enfrentará Irã, Portugal e Espanha na fase de grupos é formada em sua maioria por talentos nascidos e treinados no exterior.

"Eles amam o Marrocos; por isso jogam por nós mesmo que tenham nascido em outro lugar", disse o dentista Omar Ghazaz, 72, em janeiro, durante uma pausa matinal para o café e para aproveitar o solzinho de inverno em uma rua próxima ao grande mercado de Casablanca.

Ele e outros estavam cientes de que Renard continuava com suas "missões" –o eufemismo que ele usa para descrever os esforços da federação marroquina para descobrir novos jogadores de origem marroquina e persuadi-los a jogar pela seleção do país. Uma viagem a Manchester no final do ano passado, para ver o atacante Brahim Diaz, do Mancheter City, nascido na Espanha, terminou em impasse, e em maio um tribunal esportivo espanhol rejeitou um recurso que teria permitido que o jovem e promissor atacante Munir El Haddadi, 22, trocasse sua Espanha natal pelo Marrocos.

Esforços como esse podem significar que Mahi terá de enfrentar mais concorrência por uma vaga, em futuras convocações, mas ele fez sua escolha. Por enquanto, continuará a defender seu time na Holanda, e a viver no país. Daisy, sua mulher, é holandesa, e ele disse ter postergado sua transferência a um time estrangeiro porque queria que sua primeira filha nascesse na Holanda.

Lana Sophia Mahi nasceu em março. Como o pai, ela poderá representar tanto a Holanda quanto o Marrocos, no esporte.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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