Descrição de chapéu Copa do Mundo

Parte da esquerda rejeita camisa amarelinha com medo de 'virar' paneleira

Uniforme da seleção é associado aos atos de oposição que derrubaram Dilma

Fernanda Mena
São Paulo

De passagem por São Paulo, o publicitário boliviano Pablo Gonzales, 29, estranhou a falta de colorido em lojas e ruas paulistanas.

O Brasil é o país mais futebolístico na América Latina. Esperava encontrar, em plena Copa, mais gente com a camisa da seleção, diz. Em voz baixa, ele arrisca: Suponho que seja por causa do 7 a 1.

Ainda que a decepção com a derrota para a Alemanha seja ferida aberta no coração da torcida, há indícios de que um outro fator possa ter contribuído com o trauma diante do uniforme verde e amarelo.

Depois que a camisa foi tomada como símbolo dos protestos pró-impeachment da presidente Dilma, ficou estranho vestir qualquer uma da minha coleção, diz o estudante Matheus Peogetti, 18.

Manifestantes que pediram Fora, Dilma, Lula na cadeia e Fora, PT em 2015 e 2016 adotaram a camisa da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) como uniforme, complicando a vida de quem quer torcer pela seleção sem ser tomado como apoiador das mesmas bandeiras.

 

"A camisa foi apropriada por esses movimentos porque representa o Brasil que deu certo, mas virou sinônimo da polarização política do país. Evito usar na rua. Não quero ser confundido", admite Peogetti.

Já o auditor Vinícius Nagawa, 24, não tem receio de ser confundido com um manifestante, ainda que não tenha participado dos protestos. Eu torço é para a seleção.

Para ele, o uso da camisa amarelinha nas manifestações indica o tamanho da nossa crise de identidade.
É como se precisássemos do uniforme da seleção para nos sentirmos brasileiros. Na falta de todo o resto, é o futebol que nos representa.

Ainda assim, pode não ser mera coincidência a alta performance comercial do uniforme dois da seleção: a camisa azul estaria menos identificada com o racha político que pautou brigas e agressões entre a direita verde-amarela e a esquerda vermelha, entre coxinhas e mortadelas.

A Nike, patrocinadora da seleção, informou em nota que a camisa azul caiu no gosto do brasileiro e está com um ritmo de saída acelerado, já esgotada em algumas lojas, mas atribuiu o desempenho a seu design inovador.

O que existe é um grande desconforto do pessoal da esquerda em torcer nesta Copa por causa da associação entre a camisa da seleção e o Fora, Dilma, diz o escritor cearense Ricardo Kelmer, 53. 

Ele criou uma versão alternativa, na qual se lê: É goooooolllllpeee!!!. O texto, dividido em várias linhas, gera uma pegadinha visual na qual a comemoração de um gol se revela queixa política.

Outra versão do uniforme em vermelho com um martelo e uma foice no lugar da insígnia da Nike viralizou nas redes sociais em abril. Em poucos dias, a designer mineira Luísa dos Anjos Cardoso, 26, havia recebido 5.000 mensagens de interessados no modelo e uma notificação extrajudicial da CBF proibindo o uso dos logotipos oficiais.

Quem é de esquerda se sentiu representado, avalia. 

Professor da Universidade Federal Fluminense, Pablo Nabarrette, 38, garantiu a sua. Torcer pelo Brasil é poder abraçar o palmeirense e o vascaíno, deixando diferenças de lado. Gostaria de sentir isso também na política, mas estou muito incomodado com o uniforme verde e amarelo.

Vencedor aos 17 anos do concurso que escolheu o desenho do uniforme da seleção, em 1954, o escritor gaúcho Aldyr Garcia Schlee, 83, diz gostar da atual rejeição a sua criação após o uso político.

Usaram a camisa para derrubar Dilma como se fosse um símbolo nacional sem se darem conta de que ela representa uma entidade fraudulenta, diz, sobre a CBF, que tem dirigentes investigados e um deles preso nos EUA.

 

O estudante Gianluca Minardi, 20, é um dos que vestiram o uniforme da seleção para protestar contra a corrupção e hoje sente ter se iludido.

 

Eu achava que o impeachment marcaria a mudança para algo diferente no Brasil, e não mudou nada. Hoje, ele diz não usar a camisa.

​Já o especialista em investimentos Júlio César de Carvalho, 35, não vê motivo para deixar o uniforme no armário. Apoio o movimento político Fora, PT e gosto da seleção. São efeitos que se reforçam.

A estudante Edilene do Socorro Conceição, 25, que não queria ser confundida com uma paneleira, encontrou num novo ícone do humor nacional o apoio de que precisava para vestir a camisa. 

Trata-se do personagem Rogerinho do Ingá, sucesso do programa na web Choque de Cultura, interpretado pelo ator Caíto Mainier, que só se veste com camisa da seleção sobre mangas longas brancas.

"O Rogerinho é uma crítica ao cara autoritário, independentemente da bandeira que ele tenha", explica Mainer, 40. Ele mostra um pouco do ridículo que é ser muito radical.

O ator diz achar legal que uma galera esteja usando a camisa por causa do Rogerinho. Mas somos nós que ressignificamos os símbolos, e o fato de usar a camisa da seleção não vai fazer de alguém um paneleiro. Isso é besteira. Dá pra torcer e lutar por um país melhor ao mesmo tempo.

Para o ensaísta e professor de literatura da USP (Universidade de São Paulo) José Miguel Wisnik, que explorou as relações entre o futebol e o imaginário coletivo brasileiro no livro Veneno Remédio (Companhia das Letras), a vida pública brasileira está fortemente faccionalizada e o futebol não é capaz da magia de criar unanimidades.

A seleção não é redutível a um uso político que se faça dela, diz ele, que critica o que chama de posição puramente reativa da esquerda. 

Dizer que a camisa foi apropriada é entregar o ouro.

Para Wisnik, a seleção representa nossa história de instituições corruptas como a CBF e manipulações políticas ao mesmo tempo em que é expressão da cultura brasileira e da nossa força criativa.

Em seu livro, o ensaísta explica que a relação da sociedade com a seleção é pendular e, em geral, envolve uma combinação de sucesso com fracasso que se articula com a realidade do país de maneira oposta: quando um vai bem, o outro vai mal.

Se essa gangorra funcionar, a Copa do Mundo é nossa.

Erramos: o texto foi alterado

A versão da camisa da seleção brasileira com referência à União Soviética tem uma foice e um martelo, não um machado, no lugar da insígnia da Nike.

 

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