Peruano narra jogos da Copa do Mundo na Rússia em idioma dos incas

País andino voltou a disputar o Mundial após um hiato de 36 anos

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Luis Soto, ao centro, narra as partidas do Peru em quíchua
Luis Soto, ao centro, narra as partidas do Peru em quíchua - Angela Ponce/The New York Times
Cusco

A linguagem dos jogos de futebol está repleta de frases, metáforas e clichês que refletem a vida moderna: um treinador que estaciona o ônibus, um meio-campista cujo chute é um verdadeiro foguete, um atacante que marca um gol de bicicleta.

Mas a 3.300 metros de altitude, nos Andes peruanos, o vocabulário muda. É lá que Luis Soto, apresentador de um programa esportivo diário na Radio Inti Raymi, está narrando a primeira participação peruana em uma Copa do Mundo desde 1982, em seu idioma nativo, o quíchua.

Soto captura a ação em campo com referências mais próximas ao seu lar, em Cusco, Peru. Quando um meio-campista controla a bola e neutraliza ataques, ele está arando a terra. Se um jogador chuta a bola com força, ele comeu muita quinoa. E quando Edison Flores, um dos astros do Peru, marcou um gol importante contra o Equador, e ajudou o time a se classificar para a Copa do Mundo da Rússia, ele estava construindo estradas onde antes só existiam trilhas.

Antes disso, Soto teve de superar um obstáculo básico: encontrar um termo para "bola de futebol". O idioma quíchua foi desenvolvido pelos antigos incas, e a única palavra para bola que ele sabia ser usada em Cusco se referia a uma esfera feita de peças de couro de pescoço de lhama, para uso em cerimônias religiosas.

"O termo não existia", ele disse. "Por isso tivemos de adaptar".

Depois de consultar futebolistas locais, Soto escolheu usar "qara d'ompo", que significa bola, ou esfera, de couro. Esse é um dos cerca de 500 termos e frases que ele compilou ao longo dos últimos 10 anos, para formar o que muito provavelmente constitui o único dicionário de futebol em quíchua. O radialista o distribui livremente para todos os interessados.

O quíchua é uma tradição oral cuja forma escrita é transliterada para o espanhol e varia de região a região do país e do continente. Como a maioria das pessoas que falam quíchua,Soto aprendeu o idioma em casa, e não em um ambiente escolar formal. Especialistas nas versões do idioma faladas em outras partes do Peru dizem, por exemplo, que as palavras "ruyruku" e "haytana" também são usadas para descrever uma bola de futebol.

Para se preparar para a Copa do Mundo, Soto, 44, passou meses praticando com vídeos de jogos, para ganhar velocidade e desenvolver o tom correto, sabendo que seus ouvintes - e eles são centenas de milhares - estariam experimentando um momento importante para o Peru no cenário mundial, e pela primeira vez em seu idioma.

Soto estava no estúdio da rádio em Cusco com seus colegas narradores Saturnino Paula e Percy Chile, no sábado em que o Peru estreou na Copa do Mundo de 2018 com uma derrota por um zero diante da Dinamarca. Ele disse aos ouvintes que a derrota era como sentir um vazio nas nuvens.

Mas Soto começou quase imediatamente a se preparar para o jogo seguinte da seleção peruana, na quinta-feira contra a França, quando ele poderá dar seu primeiro grito de "gol", uma palavra que tem o mesmo significado em quíchua e em espanhol, na Copa do Mundo.

Soto está celebrando o idioma quíchua em um momento no qual o Peru está tomando medidas para revitalizar esse idioma historicamente marginalizado, e para tentar o combater o racismo entranhado contra os povos indígenas, que formam um quinto da população do país.

Edison Flores, da seleção peruana, disse que desejava participar porque a discriminação continua a ser problema sério no Peru, nos campos de futebol e fora deles. Nos último cinco anos, pelo menos 10 incidentes racistas foram registrados pela federação de futebol peruana, com torcedores gritando epítetos para os jogadores durante algumas partidas, de acordo com a imprensa peruana.

"No Peru, existe mais discriminação de classe, mas muitas vezes essa discriminação de classe toma por alvo as pessoas de origem indígena", disse Flores em entrevista por telefone. "As classes altas pensam que podem dizer e fazer o que quiserem, mas isso precisa mudar".

A pobreza aflige as comunidades indígenas do Peru, um país de 32 milhões de habitantes no qual a subnutrição infantil e os índices de analfabetismo são mais altos entre os cidadãos de fala quíchua do que no restante da população, de acordo com o Banco Mundial.

Soto disse que seu esforço é parte do combate contra a humilhação e o preconceito, que levam alguns pais a deixarem de ensinar seu idioma aos filhos. O recenseamento de 2007, o mais recente cujos dados estão disponíveis, apontava que 3,4 milhões de pessoas - cerca de 11% da população peruana - falam quíchua como primeiro idioma. O Ministério da Cultura afirmou que a porcentagem de falantes de quíchua na população do país provavelmente será mais baixa quando saírem os resultados do censo de 2017.

"A globalização gerou uma espécie de medo, ou até ódio, do idioma quíchua", disse Soto. "Os jovens que migraram das comunidades quíchuas para as cidades são marginalizados por falarem quíchua, ou por usarem os trajes típicos de sua cultura. O progressos para eles significou perder todo o amor e paixão por seu idioma original".

Quando Soto começou a trabalhar no rádio, 15 anos atrás, ele foi um dos pioneiros no uso de seu idioma. Programas de televisão ocasionalmente convidavam pessoas que falam quíchua para participações, ele conta, mas apenas para dizer algumas palavras de apresentação antes de um segmento com músicas folclóricas, ou em festivais.

Na época, Soto ouvia notícias no rádio. Depois que um clube de Cusco, o Cienciano, derrotou o River Plate, da Argentina, na Copa Sul-Americana de 2003, ele começou a pensar na possibilidade de transmitir jogos de futebol em quíchua.

Soto transmitiu sua primeira partida com clubes da liga nacional em 2004, e compilou seu glossário de termos futebolísticos em quíchua primariamente ao pedir que jogadores nos campos locais descrevessem o que estavam fazendo. Depois, treinou para pronunciar os termos aprendidos corretamente, e incorporá-los à ação rápida do jogo.

O desafio mais difícil, ele disse, foi interpretar o que ele vê em campo e conectar essa narrativa à cultura andina, para que sua audiência possa se relacionar às emoções que ele busca transmitir.

"Nossa visão de mundo sempre esteve ligada às montanhas, aos rios, ao canto dos pássaros, às flores e fauna", disse Soto, "e assim, quando transmitimos futebol, tentamos acrescentar esse ingrediente especial".

Quando um time se sai bem em campo, Soto se refere a tradicionais tarefas comunitárias realizadas nas comunidades indígenas, como erguer um telhado sobre a casa nova de um vizinho.

Mas o trabalho de reviver o idioma quíchua não vem sendo fácil.

"Quando comecei, todo mundo zombava de mim", disse Soto. "Diziam que eu não ganharia dinheiro porque o povo quíchua é pobre e não compra publicidade. Mas não estou fazendo o que faço por dinheiro. Faço para que as pessoas se sintam representadas".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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