Descrição de chapéu Copa do Mundo

Turistas ignoram templo da vodca, bebida que é paixão e desgraça russa

Alcoolismo é grave problema no país, e beber nas ruas é proibido desde 1995

Carlos Maranhão
Moscou

Em uma Copa do Mundo na qual cerveja é a única bebida alcoólica vendida nos estádios, que tal um bar e restaurante que oferece 92 marcas diferentes de vodca?

Elas podem ser encontradas em um dos mais elegantes e históricos ambientes da capital russa: o antigo Hotel Nacional, relíquia do final do período czarista aberta em 1903 na vizinhança do Kremlin.

 

Trata-se do Beluga, discretamente instalado no primeiro andar, do lado oposto do antigo apartamento 107, onde em outubro de 1917, após a Revolução, Lênin e sua mulher, Nadezhda Krupskaya, hospedaram-se durante uma semana.

O apartamento não existe mais. O Beluga, porém, permanece o mesmo há décadas.

Seus dois ambientes têm largas janelas com vista para a Praça Vermelha. Seja pela suntuosidade ou pelo fato de ficar um tanto escondido dentro do hotel, o Beluga, para alívio dos hóspedes e dos frequentadores habituais, não tem sido tomado por torcedores nesta Copa.

Ao contrário. No almoço de sábado (23), somente 6 das 27 mesas estavam ocupadas.

É possível também que os visitantes imaginem que, em vista da imponência, seja um lugar muito caro. Não é.

A dose da maioria das marcas disponíveis custa 180 rublos (11 reais). No topo da lista, a francesa Grey Goose Ducasse sai por 950 rublos (60 reais).

O Bar da Dona Onça, em São Paulo, cobra 20 reais por uma dose de boa cachaça.

Turistas que vão ao Hotel Nacional, algo intimidados com o Beluga, preferem comer e beber no conhecido restaurante do térreo, o Café Dr. Jivago, aberto 24 horas.

Ali também, em um cenário mais informal, vodca é o que não falta. Há 25 marcas na carta. Uma das suas atrações é uma pequena sala fechada com vidros jateados, que guarda, em uma estante vermelha com cerca de 50 nichos, mais de 150 garrafas diferentes de vodca. São da coleção da casa e não estão à venda.

O mais difícil, nos dois restaurantes, é decidir na carta o que se vai beber. Mesmo um conhecedor dificilmente saberá a diferença entre rótulos como Putinka, Graf Ledoff, Kalinka, Tigroff, Tatarstan, Katyusha... Quase nenhuma dessas opções é encontrada no Brasil.

Evidentemente, milhões e milhões de russos não bebem em estabelecimentos finos como esses. Bebem em casa, no bar da esquina, escondido no trabalho --ou na rua, mesmo que seja proibido, como se vê em Moscou a qualquer hora.

A proibição foi decretada em 1995 no governo de Boris Yeltsin, que por ironia era um notório beberrão.

Levantamentos da Organização Mundial de Saúde apontam que o consumo médio anual de destilados era de 16,1 litros per capita de 2003 a 2005, caindo para 15,1 litros de 2008 a 2010. No Brasil, em 2012, a média individual era de 11,5 litros por ano. A Rússia é o quarto país do mundo em consumo de álcool, atrás das ex-repúblicas soviéticas Lituânia, Bielorússia e Moldova.

O alcoolismo sempre foi um grave problema no país. Calcula-se que 500 mil russos morrem por ano por doenças causadas pelos excessos etílicos. Perto de um terço dos homens na Rússia não vive mais do que 55 anos.

"A gente vive mal, mas pelo menos não vive muito", dizia-se no período soviético. A tragédia vem de longe. Em seu reinado, Pedro, o Grande ((1682-1725) costumava embriagar os anões da corte para divertir os convidados, que frequentemente desabavam bêbados nos banquetes.

A derrota na guerra com o Japão, em 1905, foi atribuída, de alguma forma, à constante embriaguez dos soldados.

Na Primeira Guerra Mundial, o czar Nicolau 2º decretou uma lei seca. As consequências foram negativas: aumentou a fabricação de samagon, espécie de vodca destilada em casa, muito mais prejudicial à saúde, e as receitas do governo, em boa parte originárias do imposto sobre a bebida, caíram perto de um terço.

Já no regime comunista, revogaram-se as restrições e a produção foi retomada. Na Segunda Guerra, Stálin determinou que o Exército Vermelho deveria dar uma ração diária de vodca para os soldados.

Passados mais de 40 anos, Mikhail Gorbachev lançou uma cruzada antiálcool --e o samagon voltou a todo vapor. Em 2010, o presidente Dmitri Medvedev proibiu a venda de álcool no comércio entre 22h e 10h e iniciou uma campanha para que os russos substituíssem os destilados por cerveja e vinho. Atualmente, entre as bebidas alcoólicas, a cerveja lidera (41,5%), seguida da vodca (38%) e do vinho (10,3%).

"Bebida incolor que pinta seu nariz de vermelho e enegrece sua reputação", na definição do escritor Anton Tchekhov, a vodca surgiu antes do descobrimento do Brasil, provavelmente no século 15. Ela quase não tem sabor e é inodora. Por isso, muitas marcas são aromatizadas.

Existem vodcas com aroma de limão, laranja, uva e até de pimenta. "Embora a vodca não tenha gosto de nada, as aromatizadas, quando bebidas como aperitivo, podem arruinar uma refeição ou o paladar", afirma o advogado paranaense Guilherme Rodrigues, especialista em bebidas e organizador de degustações.

A vodca é produzida a partir de diversas matérias orgânicas, como trigo, centeio, cevada ou batata. Em geral, as de trigo são mais macias e as de batata, mais cremosas.

Embora normalmente associada aos russos, a vodca tem sua paternidade reivindicada por outros países, a começar pela Polônia, que a considera a bebida nacional.

Entre os apreciadores, estava o papa polonês João Paulo 2º. Em 1980, quando voava de volta para Roma ao encerrar sua primeira visita ao Brasil, ele pediu para tomar uma dose e os comissários da Varig lhe serviram uma Stolichnaya.

Como ele seria canonizado pela Igreja Católica, pode-se acreditar que beber vodca --com prudência, moderação e na hora certa-- talvez não seja pecado.

​Curiosidades da vodca

  • De maneira geral, as produzidas a partir de trigo são mais macias, e as de batata, mais cremosas
  • Normalmente associada aos russos, tem sua paternidade reivindicada por outros países, como a Polônia, que a considera a bebida nacional
  • Entre os seus apreciadores estava o papa polonês João Paulo 2º
Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.