Como entrevistas da Copa do Mundo podem virar um teatro bizarro

Fifa obriga seleções do torneio a dar coletivas de imprensa

Sarah Lyall
Moscou

Ninguém espera um diálogo socrático cintilante, e nem mesmo o repertório normal de um repórter, em uma entrevista coletiva na Copa do Mundo. Mas mesmo sob os padrões informais que vigoram no torneio, a primeira questão apresentada ao treinador da Rússia, um dia antes que sua seleção enfrentasse a Espanha, na semana passada, foi incomumente obsequiosa.

"Eu trouxe um presentinho para você", disse um repórter russo, se levantando apressadamente. Ele abriu uma sacola de compras plástica e entregou a Stanislav Cherchesov, o treinador russo, o que parecia ser um manequim de porcelana representando uma menina com uma cabeça desproporcionalmente grande.

"O nome da estátua é Sucesso", disse o jornalista, orgulhoso.

Foi um momento ainda mas esquisito que de hábito, no ritual já bastante esquisito das entrevistas coletivas durante a copa, espetáculos diários de teatro amador nos quais as questões são muitas vezes repetitivas, os jogadores geralmente demonstram tédio, os treinadores encontram 50 maneiras de dizer coisa alguma, e a neutralidade jornalística parte para o bar mais próximo, onde abre uma cerveja e torce pelo time da casa.

A maioria dos esportes profissionais oferece exercícios parecidos, é claro. Treinadores e jogadores são arrastados a uma sala de conferências em algum momento - antes do jogo, depois do jogo - e se veem forçados a responder perguntas sobre estratégia, preparo e, inevitavelmente, sobre como eles se sentem sobre o que aconteceu ou está por acontecer, submetidas por uma verdadeira horda de repórteres.

"No nosso caso, o maior desafio é não mostrar o que estamos sentindo diante de uma determinada pergunta", disse Bob Bradley, que quando treinava a seleção masculina americana na Copa das Confederações de 2009, na África do Sul, foi perguntado em uma entrevista coletiva sobre como seu time estava lidando com a notícia da morte de Michael Jackson, que aconteceu pouco antes da final do torneio.

"A pergunta foi feita com muita seriedade, como se todo mundo no time estivesse de luto", contou Bradley em entrevista. "Eu tive de me esforçar para ser diplomático. Tentei tratar a pergunta com respeito, e não dizer que aquela não era a hora para falar de Michael Jackson".

Há muitos torneios internacionais em que o potencial de incompreensão de sinais culturais fica bem claro. Mas a Copa do Mundo é única por ter tantos participantes, de tantos países, todos aparecendo no mesmo foro, com regularidade ritual, partida após partida. Depois de algum tempo, as entrevistas coletivas, com suas perguntas longas e retóricas, repletas de cláusulas, suas traduções simultâneas risivelmente inexatas, e seus formatos rigidamente cronometrados, começam a parecer parte de uma massa indistinta, e os detalhes de cada uma parecem se misturar e se espalhar por todo o conjunto de depoimentos.

Os repórteres nas coletivas argentinas querem falar sobre Lionel Messi. Os repórteres de Portugal querem falar de Cristiano Ronaldo. Os repórteres nas partidas da Islândia queriam saber se o treinador da seleção ainda é dentista. Mas para além desses detalhes idiossincráticos, alguns temas comuns emergiram, na Rússia.
 

Lisonjas e exageros

A mídia noticiosa deveria teoricamente manter a frieza e o distanciamento analítico quanto aos temas que cobre. O repórter pode vir do Japão, do Brasil ou da França, mas, na opinião dos puristas, deve se comportar como cidadão do mundo do futebol, quanto estiver cobrindo uma partida.

Nem tanto assim, na Copa do Mundo, onde é perfeitamente aceitável que repórteres de um determinado país vistam camisas de sua seleção no estádio; que aplaudam quando um treinador entra ou sai da sala; que peçam autógrafos e selfies; e que façam perguntas que não passam de variações do tema "nossa, você é mesmo ótimo". Não é incomum que um entrevistador se refira à seleção de seu país na primeira pessoa do plural.

Quando a Colômbia foi derrotada pela Inglaterra nos pênaltis, nas oitavas de final, por exemplo, as primeiras três perguntas ao treinador da Colômbia, o argentino José Pekerman, vieram de jornalistas colombianos.

"Apesar de sua eliminação, congratulações pelo futebol que a seleção jogou esta noite", começou o primeiro repórter.

O segundo disse, "antes de tudo, congratulações por ter chegado até aqui".

"Vocês nos fizeram sonhar de novo", disse o terceiro.

Ocasionalmente, os elogios vêm anexos a uma pergunta completamente distinta, como uma emenda oportunista a um projeto de lei em debate. O melhor exemplo disso veio quando um repórter da Geórgia, país da região do Cáucaso, se dirigiu ao treinador Age Hareide, da Dinamarca, depois de um empate absolutamente tedioso, por zero a zero, entre seu time e a França, que permitiu que a Dinamarca avançasse para a fase de mata-mata.

O técnico da Inglaterra, Gareth Southgate (esq.) e o atacante Harry Kane durante coletiva de imprensa
O técnico da Inglaterra, Gareth Southgate (esq.) e o atacante Harry Kane durante coletiva de imprensa - Youri Cortez - 6.jul.2018/AFP

"Essa foi a primeira partida que terminou em empate nesta Copa do Mundo, e talvez a pior do torneio até agora", principiou o jornalista, antes de descrever as vaias e os torcedores insatisfeitos que saíram do estádio antes do final do jogo. "O que você pensa disso? Como avalia essa situação?"

Talvez percebendo a irritação de Hareide quando a pergunta chegou aos seus ouvidos via tradução simultânea, o jornalista apressadamente acrescentou: "Congratulações por chegar ao mata-mata e continuar participando! Desejo-lhe toda sorte".
 

Afirmar o óbvio

Diante de uma audiência cativa de jornalistas que precisam submeter material antes de seus fechamentos, os treinadores muitas vezes aproveitam a oportunidade para discursar sobre o jogo, proferindo uma sucessão de banalidades retóricas disfarçadas em verdades profundas.

"É verdade que estamos no mata-mata, uma disputa de vida ou morte, e que só uma seleção avançará", disse Cherchesov, da Rússia, antes do jogo entre seu time a Espanha. "Se você perder, está fora".

Hareide, o treinador dinamarquês, foi convidado a falar do empate sem gols entre sua seleção e a da França, e respondeu com alguns pensamentos aleatórios sobre o esporte.

"O futebol é um processo corrente", ele disse. "Às vezes é preciso substituir esse ou aquele jogador. É preciso saber lidar com os estilos de jogo diferentes dos jogadores. O fato é que você precisa fazer o necessário para vencer".

E Fernando Hierro, o agora ex-treinador da Espanha, expôs algumas de suas importantes observações em uma não resposta especialmente memorável: "no futebol, a linha entre a vitória e a derrota é muito fina", declarou o treinador. "É o futebol, e o futebol às vezes é assim".
 

Como você se sente?

É uma jogada clássica dos repórteres de esporte - perguntar como uma pessoa se sente, quando a resposta deveria ser bastante óbvia: em geral, uma pessoa se sente bem, ou se sente péssima, ou talvez venha a decidir que saber como ela se sente não é da conta do repórter.

Perguntado por um repórter dinamarquês se ele tinha alguma "mensagem para o povo russo", antes do torneio, o treinador russo Cherchesov resvalou para o determinismo de identidade nacional.

"Você é dinamarquês? Dinamarquês da Dinamarca? Dinamarquês?", o treinador perguntou. "Seria muito difícil para você conhecer os labirintos da alma russa".

O mais frequente é que a resposta seja exatamente a esperada. Perguntado sobre como se sentia depois de sua seleção ser eliminada do torneio, o goleiro sul-coreano Joo Hyeon-woo, foi bem franco: "É claro que estamos decepcionados, e por isso muitos de nós choraram".

Na verdade, porém, esse tipo de pergunta costuma acontecer sempre na hora errada. O momento certamente não era ideal para perguntar ao espanhol Hierro como ele estava se sentindo, minutos depois que seu time passou pelo choque de uma eliminação por pênaltis, nas oitavas de final.

"Bem", ele respondeu bruscamente. "Como você acha que estamos nos sentindo?"
 

Recitar os fatos

Seja como forma de ganhar tempo enquanto pensam em algo substancial para dizer, seja porque acreditam que qualquer coisa que digam é significativa simplesmente porque foram eles que a disseram, ou seja por estarem cansados e com isso seus cérebros não estarem funcionando aguçadamente, muitos treinadores oferecem respostas nas quais simplesmente recitam os fatos do jogo.

"Jogamos 120 minutos, e aí veio a decisão por pênaltis", disse Hierro depois do jogo com a Rússia.
"Nós não perdemos hoje", observou o treinador senegalês Alou Cissé depois que a partida entre sua seleção e o Japão terminou em um empate por dois a dois. "Vencemos o primeiro jogo e empatamos o segundo. Cabe-nos redobrar os esforços e manter o foco, porque a próxima partida acontece dentro de alguns dias".
 

Dicas de viagem

Um traço específico da Copa do Mundo deste ano é a profusão de perguntas complicadas, vindas de repórteres da Rússia e de outras antigas repúblicas soviéticas, sobre um tema específico: "Você está gostando da Rússia? Por quê? Que partes do país o interessam mais? Tem algo a dizer sobre essas regiões?"

"Vocês já jogaram em diversos estádios e visitaram diversas cidades por aqui", foi como começou uma dessas perguntas, ao treinador da seleção inglesa, Gareth Southgate, depois da vitória de seis a um de seu time sobre o Panamá. "Que cidade teve a melhor organização, e que estádio ofereceu o melhor em termos de futebol e atmosfera?"

Em Volgogrado, as perguntas giravam em torno do problema local com insetos.

"Você gostou do estádio de Volgogrado, e das pequenas moscas?", perguntou um repórter russo ao treinador tunisiano Nabil Maaloul.

"Nem percebi as moscas", respondeu Maaloul.

Outro repórter perguntou ao atacante inglês Harry Kane sua opinião sobre Volgogrado e o papel decisivo da cidade na Segunda Guerra Mundial, quando ela era chamada Stalingrado e serviu de cenário a uma batalha sangrenta e decisiva, que teve profundo impacto emocional sobre o povo russo.

"A história é o que ela é", disse Kane.

Outro jornalista perguntou ao treinador da seleção francesa, Didier Deschamps, o que ele achava de Kazan. "Há alguma peculiaridade na cidade que possa ser vantajosa ou desvantajosa para vocês?"

A questão era difícil de responder, porque a seleção francesa estava na cidade há muito pouco tempo, mas Deschamps tentou.

"Não conheci a cidade ou seus museus, na verdade", ele respondeu. "Não sei o que existe por aqui porque fui do estádio para o hotel, e só".
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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