Descrição de chapéu

Do Brasil à Rússia, assédio foi de brincadeira a coisa séria em quatro anos

Expor atos misóginos é uma das armas mais usadas para combater o machismo atualmente

Dani Braga
São Paulo

Não é preciso esforço para enumerar os casos envolvendo machismo que esta Copa evidenciou, mas isso só é possível porque grande parte foi amplamente exposta e debatida. Agora, procure-se lembrar da Copa de 2014, no Brasil. Atitudes sexistas se infiltravam em qualquer área, mas mal recebiam marcação.

Se neste Mundial as jornalistas Julieth Gonzalez, Julia Guimarães e Laura Zago foram destaque após serem vítimas de assédio na Rússia —todas alvo de beijos roubados de torcedores enquanto trabalhavam em transmissões de TV—, o mesmo não ocorreu em 2014 com Sabina Simonato, repórter da Globo que passou pelo mesmíssimo constrangimento ao vivo, em plena avenida Paulista.

Na Copa brasileira, o gesto foi festejado por internautas e pela mídia, que transformou o croata beijoqueiro em personagem de reportagens.

Esta Folha, por exemplo, abriu espaço para que Zeljko Pavletic, de Zagreb, se desculpasse. Não com Sabina, mas com a namorada que, após dez anos de relacionamento, não quis mais conversa com ele.

A Sabina restou suportar mais um torcedor, desta vez de Portugal, dando-lhe outro beijo no rosto enquanto fazia uma reportagem dias depois.

Caso a atitude fosse aclarada como assédio desde o início, o segundo homem teria repetido a atitude do croata? Expor atos misóginos é justamente uma das armas mais usadas para combater o machismo atualmente.

Na esteira da propagação de hashtags afirmativas, como #primeiroassedio, #metoo e #mexeucomumamexeucomtodas, a exposição, além de criar uma rede de apoio para mulheres, constrange quem praticou e pode inibir quem cometeria os mesmos erros.

Por meio dessas e de campanhas feministas semelhantes, irradiadas principalmente pelas redes sociais e com adesão de estrelas nacionais e internacionais, a compreensão do que é assédio mudou. Cada vez mais mulheres exigem igualdade no que diz respeito a salários, liberdades e respeito. Tamanha reverberação fez com que parte da mídia também aderisse ao discurso.

Prova da transformação de comportamento se vê na abordagem e nos títulos das reportagens que estampam exatamente um mesmo cenário.

Para o que aconteceu com Julia Guimarães neste ano, lê-se no site do Globo Esporte: "Lamentável! Torcedor tenta beijar repórter da Globo na Rússia: "É horrível. Eu me sinto indefesa", no do Fantástico, a chamada é: "Repórter da Globo é vítima de assédio na Rússia e dá bronca em torcedor".

Júlia Guimarães é assediada por torcedor russo na Copa
Julia Guimarães é assediada por torcedor russo na Copa - Reprodução

Os casos de Sabina e de outra repórter da casa, Daniela Branches, em 2014, foram tratados pelo primeiro site como "moda" e "tietagem de torcedores empolgados".

Ainda que na Copa, até aqui, tenham sido registrados oficialmente 45 casos de sexismo e assédio contra mulheres —sendo 15 deles contra jornalistas—, o fato de o entendimento sobre assédio ter mudado faz brotar a esperança de que em 2022 nenhum grupo de homens se sentirá encorajado a circundar uma mulher para ridicularizá-la com gritos machistas e que jornalistas poderão trabalhar sem importunações de indivíduos que não têm permissão para tocá-las.

Poucas coisas são tão covardes quanto atrapalhar o trabalho de mulheres que, juntas, somam apenas 14% da imprensa credenciada para uma Copa —4 pontos percentuais a mais do que em 2014.

Que no próximo torneio, no Qatar, país reconhecidamente machista, o único desses números a aumentar seja o de jornalistas trabalhando (em paz). E que consigamos lançar mão da óbvia, mas hoje necessária, tag #deixaelatrabalhar.​

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.