Na Lituânia, time criado para gerar lucro vira 'prisão' de jogadores

O guineano Soumah é um dos muitos que sofrem no submundo do futebol

Kaunas | The New York Times

A carta era curta e ia direto ao ponto: o Monaco, um clube de futebol francês de primeira linha, queria que Ibrahima Sory Soumah viajasse de seu país, a Guiné, para a França, para um teste de 10 dias.

Soumah ficou entusiasmado com as possibilidades. Se o meio-campista conseguisse sucesso no teste e convencesse os anfitriões de seu valor, poderia encontrar vaga em uma das melhores escolas de aperfeiçoamento futebolístico do planeta, e quem sabe seguir o caminho que conduziu George Weah, Thierry Henry e Kylian Mbappé do Monaco ao estrelato mundial.

E mesmo que isso não acontecesse, Soumah sabia que treinar sob o comando da comissão técnica do Monaco melhoraria suas chances de encontrar outro clube e iniciar uma careira profissional decente na Europa, realizando seus sonhos e os de sua família, em Conakry.

Ibrahima Sory Soumah no sofá do apartamento onde na cidade de Setúbal, em Portugal
Ibrahima Sory Soumah no sofá do apartamento onde na cidade de Setúbal, em Portugal - Ana Brigida/The New York Times

Passados dois anos, porém, Soumah é a imagem do desânimo. Problemas para conseguir o visto o impediram de chegar à França para seu teste em janeiro de 2017. Por isso, em lugar de Monte Carlo, Soumah estava contando sua história em um restaurante de kebabs em Kaunas, a segunda maior cidade da Lituânia.

Jogando sob um contrato que lhe paga o salário mínimo do país, US$ 470 ao mês, mas bizarramente inclui uma cláusula rescisória em valor de milhões de dólares, ele dividia um quarto com um colega de time em uma casa que pertence ao Stumbras, um clube aparentemente organizado e administrado com a intenção única de adquirir e revender jogadores e lucrar com isso.

A batalha contratual de Soumah contra o Stumbras —e a de diversos outros jogadores assinados pelo time— revela o lado sombrio do mercado de transferências futebolísticas, no qual pessoas e clubes, mas também investidores e empresas que operam nas fímbrias do futebol europeu, buscam seu quinhão dos mais de US$ 6,5 bilhões investidos a cada ano na contratação de jogadores.

Para esses futebolistas, que se sentem reféns ou até prisioneiros, em um mundo de promessas violadas, maus contratos e más intenções, a situação pode ser paralisante. A vida nas margens do futebol pode ser exasperante, mesmo em seus melhores momentos. Mas ainda assim traz perspectivas de futuro que Conakry não ofereceria, e centenas de jogadores participam voluntariamente do sistema, felizes por trocar a vida difícil em seus países de origem por uma oportunidade de trabalhar na Europa.

O problema que muitos deles não demoram a encontrar é que é muito fácil se ver em situação complicada, mas muito difícil sair dessas complicações em muitos casos.

O Stumbras, criado cinco anos atrás, é tanto um mercado futuro de investimento quanto um clube de futebol, para a maioria dos envolvidos com a equipe. Um dos oito clubes da A Lyga, a primeira divisão do futebol lituano, ele é propriedade do financista irlandês Richard Walsh e do treinador português Mariano Barreto, que administra os negócios do clube desde 2016.

Walsh disse que seu envolvimento com o Stumbras surgiu depois que um amigo o apresentou a Barreto. A ideia era usar o dinheiro de Walsh e os contatos de Barreto para criar uma fábrica de talentos e gerar lucros fortes com a venda de jogadores. Depois de estudar as oportunidades em Portugal, eles decidiram em lugar disso se instalar na Lituânia, que tem um dos salários mínimos mais baixos da Europa e onde cerca de metade dos oito clubes da primeira divisão costuma se qualificar para competições europeias a cada ano.

Soumah deixou a Guiné rumo à Lituânia para perseguir o sonho de ser jogador de futebol
Soumah deixou a Guiné rumo à Lituânia para perseguir o sonho de ser jogador de futebol - Ana Brigida/The New York Times

O plano de negócios do clube parece simples: recrutar jogadores sem contrato e em seguida transferi-los, por dinheiro ou no mínimo por uma porcentagem dos lucros de uma futura transferência, a outros clubes.

A estratégia cria uma sensação de urgência para as duas partes. Os jogadores esperam que o Stumbras não seja seu paradeiro final. Os dirigentes idem. O clube, que em algumas partidas atrai apenas 70 torcedores ao estádio, se descreve como uma alternativa vantajosa para os dois lados, e como pouco mais que uma escala na viagem de profissionais ambiciosos em busca de objetivos maiores.

A colisão entre os sonhos futebolísticos, a dura realidade e as forças econômicas propele o carrossel de jogadores. Milhares de futebolistas como Soumah se transferem a cada ano, e seus percursos muitas vezes são determinados por redes informais de treinadores, agentes, intermediários e clubes. No primeiro degrau do ecossistema, em organizações como a A Lyga da Lituânia e clubes como o Stumbras e dezenas de outros, a situação muitas vezes é de cada um por si.

O Stumbras está tentando reter Soumah, ou no mínimo receber alguma coisa por sua saída, e ao mesmo tempo disputa uma batalha para evitar ficar de fora do pagamento por Kgaogelo Sekgota, 21, um talentoso atacante sul-africano conhecido como Kigi. Sekgota diz que não recebeu uma cópia de seu contrato ao assiná-lo.

Já que diversos clubes europeus expressaram interesse por contratá-lo, Sekgota e o assessor que o levou ao Stumbras decidiram que sua passagem pelo clube havia acabado. No mês passado, o jogador abandonou o clube, afirmando que seu contrato havia sido desrespeitado.

Um comitê de resolução da Fifa tentará decidir o caso.

As disputas incomodam Walsh, que afirma que seu grupo de investidores gasta 70 mil euros por mês para manter o clube. Mas ele culpa os jogadores e seus agentes —a quem chama de gângsteres— pelas disputas e não vê problemas nos contratos unilaterais entre o clube e seus atletas.

No entanto, quem conversa com Walsh hoje em dia fica com a impressão de que ele quer sair do Stumbras praticamente tanto quanto Soumah e Sekgota, e abandonar o plano de cinco anos que tinha em mente ao adquirir o Stumbras por dois milhões de euros.

“Não tenho como dizer que já tenha negociado com pessoas mais difíceis que as do futebol”, ele disse. “Não há como descrevê-las como francas e honestas”.

No começo de agosto, Soumah fez as malas, desistiu de seu contrato e saiu da cidade. Orientado pelo agente, o atleta, que defendeu a Guiné na Copa do Mundo Sub-20 da Fifa em 2017, foi para Portugal, treinar com o time sub-23 do Vitória de Setúbal. O Stumbras insiste em que não vai liberá-lo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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