Rapper, surfista e skatista sem pernas migra para fugir da crise na Venezuela

A história de superação de Alca, que faz rimas em ônibus para ganhar a vida na Colômbia

O venezuelano Alfonso Mendoza, o Alca, que não tem as penas, pratica surfe na praia de Puerto Colombia, próxima a Barranquilla, para onde migrou há nove meses, fugindo da crise econômica em seu país
O venezuelano Alfonso Mendoza, o Alca, que não tem as penas, pratica surfe na praia de Puerto Colombia, próxima a Barranquilla, para onde migrou há nove meses, fugindo da crise econômica em seu país - Raul ARBOLEDA/AFP
Diego Legrand
Barranquilla | AFP

Rimar, surfar e tornar-se pai aos 25 anos se tornam proezas quando, em razão de uma doença congênita, não se tem metade do corpo. Alfonso Mendoza acrescentou à sua história outro capítulo: o do migrante na Colômbia depois de fugir de uma Venezuela quebrada.

Um dia, esse jovem de cabelos encaracolados, braços fortes e tatuados, decidiu chamar-se Alca, uma contração das primeiras letras de seu nome e da palavra "caminho".

Alca fica feliz em poder seguir pela vida, seja em seu skate ou de vez em quando em ombros solidário

Assim, rodando e sorrindo, que ele chegou há quase nove meses a Barranquilla, a maior cidade portuária da região do Caribe colombiano.

Ele conta que o fez atravessando centenas de quilômetros por um dos mais perigosos atalhos fronteiriços que fervem debaixo do sol do deserto de La Guajira. Embora ele tivesse passaporte, preferiu assumir o risco e tentar vender algumas peças de artesanato.

Um plano de fuga que deixou de ser exceção.

​Cerca de um milhão de pessoas deixou a Venezuela em direção à Colômbia, muitas sem documentos, atravessando estradas que serviam para o contrabando de mercadorias, especialmente da gasolina subsidiada venezuelana.

Segundo a ONU, cerca de 1,9 milhão de venezuelanos deixou o país desde 2015, fugindo da crise econômica e política.

​"Eu vim como ilegal, por estas rotas, assim como minha esposa. Foi difícil, por causa da guerrilha [colombiana], pela Guarda Nacional [da Venezuela]", lembra Alca, em entrevista à AFP.

Alca deixou para trás uma Venezuela, abalada pela falta de alimentos e pela hiperinflação, onde em tempos melhores ele ganhava a vida com seus conhecimentos em design e como palestrante, quando falava da superação pessoal.

Mas, "no momento em que descobri que seria pai, tive que vir para a Colômbia", afirmou.

Em seu país, admite, não teria como oferecer um futuro melhor para a esposa Mileidy Peña e para Auralys, a bebê que nasceu no último dia 21 de setembro em um hospital público de Barranquilla.

Um futuro que por enquanto é difícil de imaginar.

Os três vivem precariamente em uma área de invasão ao sul de Barranquilla, em uma casa de zinco e madeira, ao lado de uma arena de briga de galos, onde muitos vão aos finais de semana para fazer apostas.

Diariamente, ele desce uma escadaria rústica e avança por um caminho cheio de pedras. As rodas literalmente rangem sob seu corpo.

Após trabalhar como organizador de rifas e vendedor de artesanatos, Alca começou a fazer rimas de rap no transporte público. 

Na Venezuela, cantar era um passatempo, porém na Colômbia é um meio de sobrevivência.

Sempre rodando, ele chega até a porta de um ônibus antigo. Como fazer para subir? O homem com grandes óculos e brincos começa a soltar os versos com o alto-falante trançado e o microfone preso à boca.

"E se eu for para a Venezuela / E se eu tiver que voltar / Não pensaria duas vezes / Para voltar a esta cidade".

Suas letras lhe servem como salvo-conduto. A chegada maciça de venezuelanos tem gerado ondas de xenofobia , apesar de política de "braços abertos" defendida pelo governo colombiano.

Até a metade deste ano, foram regularizados 820 mil venezuelanos.

Em um bom dia de trabalho, Alca consegue voltar para casa com 30 mil pesos colombianos, cerca de US$ 10 (R$ 38,7). Hoje, um salário mensal médio na desvalorizada moeda venezuelana equivale a US$ 29 (R$ 112,26).

Quando o trabalho informal permite, Alca vai atrás do mar. A agenesia femoral, que atrofiou o desenvolvimento de seus membros inferiores, há muito deixou de ser um complexo para ele.

Depois de superar uma depressão, que o fez pensar em se matar aos 13 anos, ele se tornou adepto da patinação acrobática, com um skate e recentemente aprendeu a surfar.

"Uma onda é uma barreira que está rompendo a mesa", afirma.

Uma metáfora de sua vida. Assim que nasceu, foi abandonado por seus pais e passou a ser cuidado pela avó, que cuidou dele até morrer, quando Alca tinha nove anos.

Depois vieram os tempos da cadeira de rodas e da escola: "As crianças me colocavam nos cestos de lixo ou me trancavam nos banheiros". Até que a música "salvou sua vida" e um amigo o ajudou a trocar a cadeira de rodas pelo skate.

O surfista rapper e agora pai quer recuperar pouco a pouco o que perdeu na Venezuela. Ele até retomou suas palestras com uma única mensagem: "Deus não me deu pernas, mas ele as substituiu por talentos".​

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.